12. À espera de Pollyanna

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Toda a cidade de Beldingsville fervilhava de excitação. Desde que Pollyanna Whitier chegou do Sanatório a andar nunca houve tanta conversa nos quintais e nas ruas. Também hoje, o centro de interesse era Pollyanna. Mais uma vez regressava a casa. Mas seria uma Pollyanna muito diferente e também um regresso diferente! Pollyanna tinha agora vinte anos. Durante seis, passara os Invernos na Alemanha e os Verões a viajar preguiçosamente com o Dr. Chilton e a tia Polly. Só uma vez em todo esse tempo estivera em Beldingsville, num curto período de quatro semanas, no Verão em que tinha dezasseis anos. Agora regressava a casa para ficar, segundo se dizia, ela e a tia Polly. O médico não viria com elas. Seis meses antes a cidade recebera, consternada, a notícia de que ele tinha morrido subitamente. Beldingsville esperara então que Mrs. Chilton e Pollyanna regressassem imediatamente ao velho lar, mas não. Soube-se, sim, que a viúva e a sobrinha permaneceriam no estrangeiro durante mais tempo. Até se disse que Mrs. Chilton procurava, assim, esquecer a sua grande dor. Porém, em breve começaram a correr rumores pela cidade de que financeiramente as coisas não corriam bem para Mrs. Polly Chilton. Certas acções que se sabia serem a base da propriedade dos Harrington tinham-se desvalorizado drasticamente. Outros investimentos, de acordo com as informações existentes, estavam em condições muito precárias. Da propriedade do médico pouco se podia esperar. Ele nunca fora um homem rico e as suas despesas tinham sido bastante pesadas nos últimos seis anos. Por isso, Beldingsville não ficou surpreendida ao saber que Mrs. Chilton e Pollyanna iam regressar a casa a menos de seis meses após a morte do médico. Voltou o velho solar de Harrington, há tanto tempo fechado e silencioso, a apresentar-se de janelas e portas abertas. Também Nancy, que agora se chamava Mrs. Thimoty Durgin, se aplicou a limpar o pó e puxar o lustro até a velha casa se apresentar impecável.- Não, não tenho nenhumas instruções para fazer isto. - Explicou Nancy aos amigos e vizinhos curiosos que paravam no portão ou se atreviam a entrar no pátio. Nancy tinha a chave, evidentemente, e fora arejar a casa e pôr as coisas em ordem. Mrs. Chilton tinha escrito a Mrs. Durgin, dizendo que ela e Miss Pollyanna chegavam na sexta-feira seguinte, e pedindo-lhe o favor de arejar os quartos e as roupas e deixar a chave debaixo do tapete da porta. - Imagine-se, debaixo do tapete! Como se pudesse deixá-las chegar cá, com tudo abandonado e eu longe daqui, sentada no meu alpendre como se fosse uma pessoa importante e sem coração! Como se elas, coitadas, não tivessem já sofrido bastante e a dor de chegarem a esta casa sozinhas, sem o médico! E ainda por cima sem dinheiro. É o que se diz! Como me faz pena! Nem quero imaginar Miss Polly, quero dizer Mrs. Chilton, ficar pobre! Não consigo pensar nisso. Não me conformo, pronto! Talvez Nancy nunca tivesse falado disto a ninguém com tanto interesse como o fez com um jovem de boa aparência, alto, de olhar franco e sorriso encantador, que bateu à porta às dez da manhã na quinta-feira. Apesar de se sentir embaraçada, sem saber como o tratar, pois ainda hesitava entre Mr. Jimmy, ou Mr. Bean, ou Mr. Pendleton. Até pôs o jovem a rir com o seu nervosismo.- Não interessa, Nancy! Chame-me como lhe der mais jeito - brincou ele. - Já sei o que queria saber, ou seja, que Mrs. Chilton e a sobrinha são esperadas amanhã.- Sim senhor, é verdade - respondeu Nancy. Nem calcula como estou contente por voltar a vê- las, apesar de não virem nas melhores condições.- Sim, eu sei, compreendo - concordou o jovem gravemente. Suponho que quanto a esse aspecto não podemos fazer nada. Mas estou satisfeito por você estar a fazer o que faz. Isso ajudará muito concluiu ele com um sorriso, afastando-se montado no seu cavalo Nas escadas, Nancy dizia para consigo própria: "não estou nada admirada, Mr. Jimmy", enquanto olhava a figura simpática do jovem montado a afastar-se. "Não me admira nada que ande à procura de Miss Pollyanna. Já há muito que eu disse que havia de chegar a altura. E então agora que se tornou tão simpático e alto. Espero que venha a ser como eu penso, como consta dos livros. É claro, se casar com ele e forem viver para o solar de Mr. Pendleton. Quem havia de dizer, ser este o pequeno Jimmy Bean de antes! Nunca vi uma mudança tão grande em ninguém " e foi assim que concluiu o pensamento num último olhar para a figura que desaparecia lá longe, na estrada. Pensamentos semelhantes atravessaram o espírito de John Pendleton, pouco depois, ainda nessa manhã, quando da varanda da sua grande casa cinzenta, em Pendleton Hill, observava o cavaleiro que se aproximava. Nos seus olhos via-se uma expressão muito semelhante à de Mrs. Nancy Durgin. E também dos seus lábios se ouviu a exclamação: "Mas que bela figura!", quando cavalo e cavaleiro se encaminhavam para o estábulo. Após breves minutos, o jovem contornava o canto da casa e subia as escadas.- Então, meu rapaz, é verdade que sempre vêm?- perguntou o senhor, com manifesto interesse. - Sim.- Quando?- Amanhã! - rematou o jovem, ao deixar-se cair numa cadeira. Face à tensão que se notava na resposta, John Pendleton franziu a testa. Olhou de relance para o rosto do jovem, hesitou por momentos e depois perguntou abruptamente:- O que é, filho, que se passa?- O que se passa? Oh... nada!- Não sejas tolo! Sei muito bem! Saíste daqui há uma hora, tão ansioso que nem os novos cavalos foram motivo para te reter aqui. Agora aí estás, sentado, desanimado, e, na mesma, sem que os cavalos te entusiasmem. Se não te conhecesse bem, era capaz de pensar que estarias descontente por as nossas amigas regressarem. Fez uma pausa à espera de resposta, que, porém, não obteve.- Então, Jimmy, enganei-me, ou estás contente por elas virem? O jovem riu, mas o seu olhar era desassossegado.- Sim, claro.- No entanto, não é isso que parece. Ele riu de novo, agora com algum rubor nas faces.- É que estava a pensar em Pollyanna.- Em Pollyanna, porquê? Não fizeste mais nada senão falar dela desde que vieste de Boston e até descobriste que estava para chegar. Será que estás mesmo morto por ver Pollyanna? O rapaz inclinou-se para a frente, com uma expressão curiosa.- É, é exactamente isso! É como se ontem nada pudesse impedir-me de ver Pollyanna, e hoje, que sei que ela vem, estou assim a modos que perplexo.- Mas porquê, Jimmy? Perante a incredulidade de John Pendleton, o jovem encostou-se à cadeira, rindo embaraçadamente.- Bem, é tudo muito estranho e não espero que compreenda. Sei lá, parece-me que queria que Pollyanna não crescesse. Achava-a tão querida, tal como era! Como gosto de pensar nela tal como a vi da última vez, com a sua carinha séria e cheia de sardas, os seus totós de cabelo loiro dizendo com lágrimas nos olhos: "Sim, estou contente por ir, mas acho que ainda ficarei mais contente quando regressar". Foi há quatro anos que a vi pela última vez. - Eu sei. Compreendo o que queres dizer. Acho que senti o mesmo até vê-la no último Inverno em Roma. O jovem voltou-se apressadamente.- Viu-a? Então fale-me dela. Uma expressão divertida espelhou-se nos olhos de John Pendleton.- E eu a julgar que não querias saber de Pollyanna já crescida. Com uma careta, o jovem disfarçou.- É bonita?- Ai, os jovens! - disse John Pendleton, brincando. - É sempre a sua primeira pergunta!- É ou não é? - insistiu o jovem.- Hás-de julgar por ti próprio. Mas, pensando bem, creio que não é. Podias ficar desapontado. Para o meu gosto, Pollyanna não é bonita no sentido convencional do termo. Com efeito, tanto quanto sei, um dos problemas dela é mesmo o de saber que não é bonita. Em tempos disse-me que uma das coisas que gostava de ter, quando fosse para o Céu era cabelo negro encaracolado; e no último ano, em Roma, disse- me ainda outra coisa. que não era de todo esclarecedora, mas em que detectei um certo desgosto velado. Disse que gostava que alguém escrevesse um romance com uma heroína que tivesse cabelo liso e uma sarda no nariz, mas que, apesar de tudo, pensava ser preferível que as raparigas de quem se escrevia nos livros não os tivessem.- Isso é mesmo da Pollyanna que eu conheço.- Ah, deixa, vais reconhecê- la - sorriu o senhor, com ar curioso. Bem, agora desdigo- me, eu acho que ela é bonita. Tem uns olhos adoráveis e é a perfeita imagem da saúde. Detém toda a alegria primaveril da juventude e todo o rosto se ilumina maravilhosamente quando fala, de tal modo que faz esquecer se as suas feições são ou não regulares.- Ela continua a jogar o jogo? John Pendleton sorriu.- Calculo que sim, embora já não fale muito disso. Pelo menos a mim, das duas ou três vezes que a vi, não falou. Fez-se um breve silêncio e depois, calmamente, o jovem Pendleton disse:- Isso era uma das coisas que me preocupava. Porser um jogo que representou tanto para muita gente, em toda a cidade! Não me conformava que ela tivesse desistido dele; e, ao mesmo tempo, não conseguia imaginar uma Pollyanna crescida a dizer constantemente às pessoas para se alegrarem com alguma coisa! De algum modo, como disse, não queria considerá-la crescida.- Se fosse a ti, não me preocupava com isso - disse o senhor, com um sorriso brincalhão. - Com Pollyanna sempre houve alegria, e não me enganarei que ela continue a viver segundo o mesmo princípio, embora, talvez, não exactamente da mesma forma. Pobre moça! Receio que necessite de algumjogo, para tornar a existência tolerável durante algum tempo, pelo menos.- Está-se a referir ao facto de Mrs. Chilton estar em dificuldades? Ficaram mesmo pobres?- Penso que sim. Estão com sérios problemas quanto a dinheiro, tanto quanto sei. A fortuna pessoal de Mrs. Chilton foi drasticamente reduzida e os bens de Tom eram escassos. Ele endividou-se por causa de serviços que nunca lhe foram pagos nem nunca o serão. Tom nunca se recusava quando era solicitado e todos os caloteiros da cidade o sabiam e abusavam. Ultimamente teve muitas despesas. Depositava grandes esperanças no seu regresso, quando tivesse concluído a especialização na Alemanha. Partiu sempre do princípio que sua mulher e Pollyanna dispunham de meios mais que suficientes, provenientes da propriedade dos Harrington e nunca se preocupou com isso.- Estou a perceber. Foi pena!- Não é tudo. Dois meses depois da morte de Tom, vi Mrs. Chilton e Pollyanna em Roma. Mrs. Chilton estava em péssimo estado. Para além da tristeza, em resultado da morte do marido, começava a ter noção dos seus problemas financeiros e estava quase fora de si. Recusava-se a regressar a casa e afirmava que nunca mais queria ver Beldingsville nem ninguém daqui. Como sempre foi uma mulher orgulhosa, o infortúnio afectou-a de modo curioso. Foi Pollyanna quem me disse que a tia estava obcecada com a ideia de que Beldingsville jamais aprovara o seu casamento com o Dr. Chilton e agora, com ele morto, ela sentia que não estariam solidários com a sua dor. Ressentia-se também pelo facto de saberem que agora, para além de pobre, também era viúva. Em suma, mergulhara num estado extremamente mórbido e infeliz, que tinha tanto de irracional como de horrível. Pobre Pollyanna! Surpreendia-me como ela aguentava! Se Mrs. Chilton continua no mesmo estado a rapariga vai-se abaixo. Daí que eu diga que Pollyanna deve precisar do jogo.- Como me entristece que isso esteja a acontecer a Pollyanna! exclamou o jovem, com voz pouco firme.- Sim, estou em crer que as coisas ainda não melhoraram, pela maneira como vêm hoje. Tão silenciosamente, sem dizerem nada a ninguém! É mesmo típico de Polly Chilton! Não quer que ninguém a espere. Só assim se compreende que tenha escrito somente à mulher do velho Thimoty, Mrs. Durgin, que olhava pela casa.- Sim, a Nancy contou-me. É uma boa criatura! Abriu a casa toda e tem-se ocupado dela para não parecer um túmulo de esperanças vãs e prazeres perdidos. Mesmo os jardins apresentam bom aspecto, visto o velho Tom não os ter desprezado. Mas fiquei comovido com aquilo. Veio depois um longo silêncio, até John Pendleton sugerir:- Devia ir alguém esperá-las. Porque não vais tu à estação?- Então vou.- Sabes em que comboio chegam?- Não. Nem a Nancy sabe.- Então como vai ser?- Vou para lá de manhã e nalgum comboio hão-de chegar! - resignouse o jovem.- O Thimoty também vai com a charrete da família. No fim de contas, não são assim tantos os comboios.- Eu sei - disse John Pendleton. - Olha, Jimmy, admiro os teus sentimentos mas não o teu discernimento. Alegra-me que sigas os teus sentimentos e não a tua razão. No entanto, desejo-te boa sorte.- Obrigado, senhor - disse o jovem, com um sorriso triste. - Bem preciso que me deseje sorte.

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