De quem nunca aprendeu a andar

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Um passo de cada vez, é o que dizem. Mas ei!, ninguém nunca me ensinou como deixar de engatinhar. Sinto essa ansiedade por viver, me preenchendo feito tempestades, da ponta de meu pé à ponta de minha língua. E quero sentir, morder e devorar a vida; as migalhas não aplacam a fome de minha alma que está sempre por desejar. E por querer com tanta intensidade, me vejo a todo tempo tropeçando em medos e sentimentos que nunca me ensinaram a compreender. Me vejo a todo instante cometendo enganos, por nunca ter aprendido como evitá-los.

"Você não é mais criança", ele diz, "Arranje um trabalho. Vá estudar. Endireite sua vida e pare de agir feito moleque. Pare de chorar por nada. Sua vida é fácil, porra. Queria eu estar no seu lugar. Levanta essa cabeça, e pare de moleza. Anda, levanta essa cabeça e seja um homem. Pare de palhaçada, engole esse choro e seja a porra de um homem"

Eu estou tentando me firmar com os dois pés no chão, realmente estou; mas toda vez que penso que estou prestes a dar esse primeiro passo, eu perco o equilíbrio e me esborracho no chão. Não há ninguém me esperando à frente, me dizendo como dar cada passo, me encorajando a continuar. E também não há ninguém atrás, para me assegurar que eu não caia. E eu continuo tentando, continuo engatinhando pela vida, criando hematomas por toda minha alma, a cada tropeço, a cada erro cometido, a cada tentativa por ser eu mesmo. E quem seria esse?

Cada sentimento é um tiro no escuro, é uma bandeira arqueada sem promessa de vitória. E essa porra, maluco, essa porra machuca. Ter que vencer o medo sozinho e botar a cara no mundo. E o processo, é sem tapinha nas costas, sinto que estou indo aos empurrões, aos chutes... E veja, estou caindo novamente, pois ninguém nunca me ensinou a deixar de engatinhar.

"Você me dá vergonha", ele diz. "Nunca faz nada direito. Fulano já ta bem de vida, e você ta aqui ainda. Sicrano já está casado, e você não sabe nem o que quer. Levanta essa cabeça porra, e haja como um homem deve agir"

Eu estou aqui, arregaçando as mangas e aceitando a luta, todos os dias, e eu perco, porque ninguém nunca me ensinou a enfrentar esse mundo. E ele é impiedoso, oh se é; não há lugar para os fracos nessa merda. E o tempo passa, e ele corre por mim feito bala, que já o perdi de vista. E eu estou ficando velho, mas me sinto como se tivesse acabado de nascer, e esse mundo é imenso e maravilhoso, e quero todo ele num piscar de olhos; mas esse mundo também é feio e violento, e as vezes eu quero apenas me refugiar dessa agonia. Mas ei!, ninguém nunca me ensinou a deixar de engatinhar.

"Eu te ensinei tudo o que você precisava saber", ele diz. "Nunca deixei te faltar merda nenhuma. Te dei comida, te dei um teto, te dei ensino, te dei até a porcaria de um deus pra você acreditar"

"Não é suficiente", eu digo.

"Por que ainda está reclamando? Já não te dei tudo o que você queria?"

"Nunca foi o suficiente"

"O que mais você quer? Me fala porra! O que mais você pode querer que eu já não tenha te dado de mão beijada?! Sua vida é tão fácil", ele diz.

"Eu quero amor", eu digo. "Eu quero que você olhe pra mim e me perceba. E por favor, não me julgue. Eu sinto o seu desprezo toda vez que você abre a boca, e eu não preciso disso"

"Você reclama igual à uma mulherzinha. E não me venha com essa besteira de amor pro meu lado. Levanta essa cabeça, e seja a porra de um homem!"

"Você não me escuta..."

"Você não precisa de amor, você precisa da porra de um trabalho. Você precisa arranjar uma boceta pra poder foder. Você precisa se arranjar na vida e sair da minha vista. Eu já me cansei de você"

"Por que é tão difícil pra você olhar pra mim? Você sabe do que eu preciso. E eu não estou pedindo muito"

"Me cansei de você"

"Ei, pai. Eu não estou pedindo muito. Por favor, só olhe para mim. Veja o quanto machuca"

"Você me envergonha. Eu não suporto olhar pra você, porque você não tem nada haver comigo"

"Ei, pai. Olhe pra mim. Veja o quanto isso dói"

"Você reclama de barriga cheia. Levanta essa cabeça, e vira um homem porra!"

"Pai..."

"Pra mim chega!"

"Pai... Por favor, me abraça. Está doendo demais. Olhe pra mim"

"Você me dá nojo"

"Pai... Por favor. Pai... Pai... Está doendo demais. Por favor. Olhe pra mim pai. Olhe pra mim! Pai... Pai! Pai...?"

E este silêncio... ele grita por dentro de mim, tão alto, nesse espaço não preenchido, nessa carência de muito tempo. E eu não suporto, e me entrego a esses porres, dia a dia, dois dedos de promessas nesse copo fundo que nunca é o suficiente. E eu me embriago, e me deixo ir por essa morte lenta, e tudo o que quero é viver; mas estou longe de começar a sentir essa brisa de renovação. E eu me arrasto por essa vida, acumulando feridas por pedras e pedras nesse caminho árduo e solitário; pois ninguém me ensinou a ficar de pé, ninguém nunca me ensinou a deixar de engatinhar.


Dicotomia do SerOnde histórias criam vida. Descubra agora