Ei Padre, o que há para os ímpios no céu? Será que Deus tem olhos em mim quando estou gritando injúrias e blasfêmias? Será que ele tem guardado minha coroa no paraíso , mesmo eu levantando a mão diariamente contra meu próximo? Veja Padre, meu coração está em conflito, e essas batidas tão fortes, é porque já não aguento a provação. Reze por minha alma; mas primeiro, deixe-me lhe confessar um pecado que tem me atormentado:
“Que Deus tenha piedade de sua alma", ele dizia para ela, antes de levantar o punho e esmurrá-la no estômago, onde ninguém nunca veria as marcas que ele lhe deixava diariamente, pois os vestidos que ele lhe comprava eram belos, e ela se via na obrigação de usá-los, pois ela o amava Padre, apesar disso.
Isso acontecia diariamente, e minha mãe nunca se dava o valor que merecia. Sua alma estava aprisionada à esse matrimônio regido à falsas doutrinas e abuso constante. E ainda assim, todos os dias ela se levantava às seis e rezava a Deus agradecendo pela vida do meu pai.
E ele dizia: “Eu vou queimá-la com esse cigarro, se eu chegar do trabalho e a mesa do jantar não estiver pronta”
Todo dia era uma ameaça diferente, Padre, e meu pai nunca ficava satisfeito até encontrar qualquer motivo besta para machucar minha mãe. E eu nunca fiz absolutamente nada, por vinte anos. Eu ouvia os gritos de meu quarto, eu ouvia as pancadas nas paredes, o barulho dos talheres quando ele procurava pela faca para ameaçá-la. O travesseiro me servia de outro mundo, onde eu enfiava meus ouvidos e chorava por ódio.
Mas ontem, Padre, a raiva me encheu o coração e eu cedi minha alma ao Diabo. Cheguei da rua e encontrei os dois à sala, de romance; meu pai havia lhe trago flores, pois se tratava de ser o aniversário de casamento dos dois. Me surpreendia que ele tivesse se lembrado. Flagrei os dois aos beijos, e minha mãe lhe declamando amores como se a violência ao qual ele a submetera por tanto tempo, fosse parte do acordo. Aquilo me indignou Padre, e o Diabo observou a brecha em meu coração, e se aproveitou para desencadear o inferno dentro de mim.
Me lembro de não ter dito palavra alguma, apenas agi, e fui até a cozinha, minha cabeça pulsando feito uma bomba relógio, e minhas mãos tremendo de nervoso. Abri a gaveta de talheres (e aquele som tão carregado de angústias, deu-me toda a coragem de que eu precisava), e busquei a faca, aquela mesma que por tantas vezes eu o avistara usando para ameaçá-la. Então eu voltei à sala, Padre. Aquele objeto em minha mão consistia por não causar a ele espanto algum, pois seu ego o fazia acreditar estar acima de tudo e de todos.
“O que está fazendo com isso?”, ele disse, sorrindo, com escárnio. “Vá para seu quarto, porque hoje eu quero dar um trato em sua mãe, e eu não quero você perambulando pela casa feito um rato"
Naquele momento, a única coisa que me impediu de prontamente avançar sobre meu pai, Padre, foi o olhar de espanto de minha mãe. Ela entendeu o que eu estava prestes a fazer...
“Filho...”, ela ainda tentou me convencer do contrário, com o medo e a angústia se alastrando em sua expressão.
“Tem que ser feito!”, eu disse, e eu já não me reconhecia, não era minha voz, era o Diabo em mim, Padre; tenho certeza de que era.
Me lembro de que meu pai chegou a apoiar as mãos no sofá para se levantar, mas não lhe dei chance alguma de reagir, e avancei para cima dele feito uma cobra atiçada, e o abocanhei com a faca em seu peito. Ouvi o ruído da lâmina penetrando em sua pele, e isso me causou prazer; mas logo em seguida ouvi o grito alarmado de minha mãe, e isso me despertou para a realidade do que eu havia feito. Soltei a faca que ficou encravada em seu peito, e saí de ré até encontrar a parede atrás de mim. Meu pai se deixou cair sobre o sofá, com sua vida se desfazendo no sangue que jorrava e manchava sua camisa; e eu me deixei cair ao chão, atribulado, assustado mais que tudo, desorientado, e aflito pelo grito de minha mãe que já não me deixava. Ela se jogou sobre o corpo dele, desesperada por salvar a vida do homem que amava; e nada pôde ser feito, pois em instantes ele se enrijeceu e morreu. Então corri para meu quarto e me escondi do mundo. Hoje pela manhã, ao acordar, coloquei em minha cabeça de que tudo não tivesse passado de um pesadelo, então deixei meu quarto e me dirigi á sala com intuito de confirmar esse detalhe. Para o total tormento de meu coração, o pesadelo acabou por ser real, e ele estava a minha espera naquela sala, Padre.
Além de meu pai morto sobre o sofá, também encontrei minha mãe ao seu lado, os pulsos cortados com a mesma faca, que agora repousava sobre o seu colo. Aquela cena, aquela terrível realidade, me atingiu como uma bala de espingarda; e a dor, e o terror que eu já não suportava, me fizeram fugir daquela casa, me fizeram fugir daquele meu crime. E no meio do caminho, foi quando avistei a igreja, Padre, e logo corri para cá, e aqui estou.
Meu coração queima em desgraça, e sinto que Deus tem me abandonado. Agora ele me renega, pois deixei que o Diabo me corrompesse e me usasse para tal ato de atrocidade. Tirei duas vidas, e já não consigo enxergar o céu, Padre. Tudo tem estado tão escuro por dentro de mim, que já não suporto enxergar a luz; eu me prostro ao chão em vergonha. O que se fazer, Padre? Me diga! O que posso fazer para não me acabar naquela sala de minha casa, a derramar-me o próprio sangue? Salve-me, Padre. Compadeça -se de meu sofrimento, e me dirija aos céus. Quero paz após a tormenta, ou receio que me inclinarei à essa escuridão, e o Diabo se alegrará com minha desgraça....
Obs: Apesar de ter escrito esse texto, sua realidade não cabe à mim, felizmente. Assisti à uma notícia recentemente num jornal, que se tratava de um caso parecido. Me veio a inspiração de escrever sobre, então parti pro Word e deixei esse relato criar vida. Apesar de ser em parte ficcional e não retratar algo de minha vida, eu ainda assim não consigo deixar de pensar que esse texto cabe à todos nós, porque hoje em dia vemos muito disso acontecendo no mundo: violência dentro da família, violência contra a mulher, abuso em todos seus sentidos; e vemos o quanto isso as vezes transgride a alma de um inocente que precisa conviver com essa constante violência dentro do lar, e o quanto isso o afeta e as vezes o faz agir erroneamente.
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Dicotomia do Ser
Não FicçãoDeixo aqui textos avulsos, de mundos diversos que há dentro de mim. Tanto do sofrer, quanto do sorrir, eis que tudo se resume à sensações do mesmo ser. Capa: @Adnil_ahcor