Eu era criança, quando o demônio apareceu para mim pela primeira vez. Eu devia ter onze anos na época, e desconhecia da vida toda a maldade que já há muito tempo está irraizada no coração do homem. Esse demônio, que tão cedo se apresentou em minha vida, fez criar feridas que até hoje custam em cicatrizar. Não lembro exatamente o dia exato quando ele veio até mim, com seu charme e sua corrupção. Era dia de aula, e eu necessitava de pegar o ônibus para chegar à escola. Assim que subi na condução, eu o visualizei logo de cara, mas não lhe dei qualquer atenção especial naquele instante, pois eu ainda não fazia ideia do que ele representaria para mim. Era um homem de não mais que quarenta anos, mas já com alguns cabelos grisalhos sobre as orelhas, e um olhar penetrante de quem lhe devoraria a alma se lhe dessem esta oportunidade. Neste dia, ele vestia-se de seu uniforme de uma empresa qualquer em que ele trabalhava. Era só mais um passageiro, um trabalhador seguindo na luta do dia a dia, certo? Não sei se já naquele dia eu já estivesse em seus planos, mas eu posso dizer o quão estranho foi quando eu me sentei em um dos assentos mais ao fundo, e este homem logo em seguida veio se sentar ao meu lado. Ele me cumprimentou e sorriu para mim. Apesar de achar incomum, eu o respondi da mesma forma. Me lembro que ele costumava carregar uma mochila junto dele, e que naquele primeiro dia ele usou dessa mochila que estava em seu colo, para esconder dos outros passageiros o que ele pretendia fazer comigo. Justamente por eu também estar com minha mochila sobre meu colo, que eu acredito que aquele homem teve facilidade para fazer aquele primeiro movimento de sua mão até minha coxa. Foi suave, certamente ele não queria me assustar, com certeza não queria que eu gritasse e o culpasse pelo o absurdo que ele estava fazendo. Quando me virei para olhar em seus olhos, tentando entender o que estava acontecendo, não consegui reagir, fiquei imóvel, sentindo sua mão deslizando mais e mais até eu senti-la em meu membro. Eu nunca havia sentido nenhum estímulo como aquele em toda minha vida até então, e eu admito que fiquei excitadíssimo, senti aquilo vibrando em sua mão, enquanto um frio na barriga me tomava. Não consegui deixar de olhar para ele, seus olhos fixos em mim, e um sorriso sutil em seus lábios, como se o que ele estava me fazendo fosse um favor, e eu devesse acreditar em sua bondade. Não durou muito tempo, e depois de alguns segundos ele removeu a mão, pegou a mochila e se levantou. Naquele primeiro instante, desejei profundamente que ele tivesse permanecido e continuado o que ele estava fazendo; mas assim que o perdi de vista, um forte sentimento de vulnerabilidade me aplacou, e eu comecei a sentir que fosse chorar, porque de alguma forma eu sabia que aquilo não deveria ter acontecido. Não chorei, não disse uma palavra sequer; mas fiquei o tempo todo incomodado olhando para as pessoas a minha volta, tentando perceber se elas tinham notado alguma coisa. Ninguém se pronunciou, nem naquele dia, nem nos próximos em que aquilo continuou acontecendo, durante quase um ano. Todas as manhãs, o demônio sorria para mim e me permitia aproveitar o que ele fazia em mim. Eu o amava enquanto ele me proporcionava aquele prazer, mas então o odiava quando eu me encontrava sozinho, e não porque eu lhe sentia a falta, e sim porque eu sabia que não deveria permitir ou mesmo gostar daquilo, e porque eu não tinha força de vontade para dar fim ao abuso que eu estava sofrendo, e contar para alguém.
No final do ano letivo, eu voltei para casa, para minhas férias, e aquele homem desapareceu da minha vida; eu não representava nada para ele, a não ser uma vítima para o crime que ele havia cometido em mim por tanto tempo. Sua falta não deixou de ser sentida; eu era só uma criança, sem saber o que sentir. Aquilo me doeu feito um término de relacionamento, e até hoje eu me odeio por ter me permitido ser corrompido por aquela necessidade, e pelo medo. Eu deveria ter contado para alguém; mas o demônio havia me feito jurar que não contaria. E por que eu contaria? Ele não estava fazendo nada demais, certo? Era que ele queria que eu acreditasse.
"Você gosta quando eu te toco, não é, meu garotinho? Meu pequeno anjo"
Eu consigo ouvir sua voz vibrando dentro da minha cabeça ainda hoje. Como vidro se partindo. E eu apenas quero gritar, algo que eu deveria ter feito naqueles dias. Eu deveria ter exposto o demônio, e deixado que ele fosse destruído. Mas escolhi o silêncio, e isso ainda hoje sangra, e esse ódio nunca vai embora; meu deus!, isso nunca acaba?
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Dicotomia do Ser
No FicciónDeixo aqui textos avulsos, de mundos diversos que há dentro de mim. Tanto do sofrer, quanto do sorrir, eis que tudo se resume à sensações do mesmo ser. Capa: @Adnil_ahcor