Hoje fazem cem dias desde a ultima vez que vi o sol. Cem dias da ultima vez que senti o vento bater em meu rosto, que senti o cheiro de flores e hambúrgueres.
Eu não sei mais quanto tempo ficarei presa nesse quarto horrível que cheira a mofo e coisas velhas, sem uma geladeira para manter comida ou um vaso sanitário minimamente descente. A unica janela do cômodo fica no teto cheio de goteiras.
Não pense que nunca tentei arrombar a porta, já quebrei uma cadeira fazendo isso. Mas portas de aço não são fáceis de abrir.
O quarto tem espaço apenas suficiente para que caiba uma mesa de madeira pequena, duas cadeiras, uma cama com boa parte do metal já enferrujado, uma arara para colocar minhas duas únicas trocas de roupa e uma pia para lavar a louça. Além do minusculo banheiro no canto direito do quarto, com uma pia quase caindo e um vaso velho que vive entupindo.
O quarto não é muito colorido, na verdade só tem duas cores. A tinta marrom da parede a esquerda, perto da cama, estrá desbotada e descascando graças a umidade. A tinta branca das outras três paredes estava tão desgastada e velha que esfarelava e caia, manchando o chão cor de chumbo de pó branco.
Não sei exatamente quem me sequestrou, ou o porque. Mas as vezes eu acordava com dores no corpo e marcas, além dos sintomas de fraqueza momentânea e lerdeza psicológica, efeitos colaterais de algum dopante ou anestesia. As marcas, como enfermeira, eu conhecia bem.
Não era fácil saber que em algum momento, durante a noite ou em qualquer momento que o sono me clamava, alguém vinha as escuras, me dopava de forma silenciosa e abusava de mim. Isso começou a acontecer no trigésimo dia, com intervalos de 5 dias. Tempo suficiente para as marcas sumirem de minha pele.
Ao examinar minha própria vagina, soube que quem estava fazendo isso, fazia com cuidado suficiente para não deixar grandes danos no tecido, como se soubesse exatamente como fazer. Um desgraçado estuprador muito esperto.
Apesar de o quarto estar em péssimo estado, o que provavelmente afetaria — já estava afetando — minha saúde. Minha rinite e tudo que terminar com "ite" vem me deixando mole há um tempo. Tudo graças a esse lugar mofado e empoeirado, não importando quantas vezes eu limpasse.
Limpar meu próprio cativeiro... a ideia seria cômica se não fosse trágica.
Jamais pensei que algo do tipo aconteceria comigo, jamais. Mas cá estou, diariamente sobrevivendo sem luz do sol, limpando diariamente o lugar onde estou em aprisionada e lutando contra minha própria mente.
" Ninguém vai ouvir seus gritos", é o que minha mente diz.
" Ninguém vai encontrar você. Ninguém encontra garotas sequestradas.", ela sussurra, como uma serpente se preparando para dar o bote. " Será mais fácil se eletrocutar no chuveiro".
Mas estou armada contra mim mesma, a esperança um escudo inquebrável até o momento. Vamos ver quanto tempo isso vai durar.
Mas, as vezes, mesmo não sendo minha culpa, há dias em que fico me encarando no espelho por longos minutos, sentindo nojo do meu corpo, de mim como um todo. E quando as lagrimas param de cair, eu me recomponho e ergo a cabeça. E assim vem sendo nos 80 dias seguintes, embora as marcas agora não passem de chupões.
As vezes, soco a parede de raiva e dor e tristeza e ódio. Principalmente de ódio.
Outras vezes choro tanto que não sei mais de onde tiro água corporal para as lagrimas continuarem caindo.
E há dias como hoje. Dias em que me sinto vazia e inútil. Dias em que minha vida cheia de alegria e cores parecia um sonho distante, inalcançável.
Depois de dez dias nesse cativeiro, marcando os dias na mesa, começo a ficar inquieta, e nunca tinha algo para fazer, raramente eu tinha um prato para lavar ou coisa parecida. Minhas coisas sempre apareciam limpas na semana seguinte, menos o chão. Eu suspeitava que eles vinham a noite e me sedavam para que eu nunca visse seus rostos. E realmente estava funcionando, pois jamais os vi, ou os ouvi além do que eles julgavam ser necessário.
Durante os horários das refeições, um homem encapuzado de olhos castanhos abria a pequena janela da porta e deixava a comida escorregar pela barra de aço horizontal a frente da mesma.
Na maioria das vezes eu estava tão faminta que sequer me importava com o olhar desejoso do homem atras da porta. Poucos minutos depois, ele sempre ia embora a passos pesados e arrastados.
Ouço a janela da porta se abrir.
Era hora do jantar. São sete e meia da noite, pela brisa com um leve cheiro de terra e o longínquo barulho de flores sendo arrastadas no chão pelo vento, eu supus que havíamos entrado no outono, e que em breve chegaria o inverno. E dele viria acompanhado os feriados que eu tanto gostava; o Natal e o Ano novo.
Me aproximo da janelinha e pego a comida, vapor saindo do prato.
O homem não me encara dessa vez, apenas fecha a janela e ouço seus passos sumirem no corredor.
Me sento na mesa cheia de marcas; os dias em que estava aqui. A comida estava com uma boa cara, e o cheiro estava ótimo. Arroz, feijão, carne bovina em tirinhas e cenoura cozida.
Encarando o prato, penso em como a vida é um instante, como qualquer coisa, boa ou ruim, podem acontecer em um milésimo de segundos.
Cerca de um ano atrás eu estava entrando para o curso de técnico em enfermagem, e depois dos dois anos de curso, eu faria faculdade. Quem diria que eu terminaria assim antes mesmo da minha vida realmente começar.
Cada dia é uma luta para não deixar minha mente definhar. Jamais ignoro a realidade na qual estou inserida nesse momento. Não ignoro as marcas, as dores e a violação que meu corpo, que eu e minha alma e minha mente sofrem a cada dia.
Não ignoro o fato de estar trancada e ter que agir normalmente para não surtar, enlouquecer ou tentar contra minha própria vida.
Infelizmente, não são todos os dias que consigo me manter forte.
Há dias em que não como, não saio nem da cama.
E há dias que fico procurando o que fazer, mesmo que minhas opções sejam escassas; bagunçar a cama só para arrumar novamente, lavar o banheiro várias vezes, varrer o chão mesmo que já esteja limpo... coisas assim.
Levo a comida até a boca e sinto os sabores se misturarem. É a única coisa que me faz sentir como uma garota normal.
E não uma garota que vive em cárcere.
Acabo deixando metade da comida no prato, esfriando e deixando de ser saborosa.
Sem muito ânimo, deixo o prato na pequena pia e me sento na cama, encarando os pêndulos do relógio se moverem.
Os dias tem passado mais devagar que o de costume. Um minuto parece uma hora, e uma hora parece um ano. O que mantém minha noção de tempo são as marcas na mesa, um pequeno risco para cada dia.
Então fico encarando o relógio até os ponteiros marcarem meia noite. Então me levanto, a cama faz barulho com o movimento repentino.
Pego a faca em cima da pia e me sento na cadeira logo em seguida.
O barulho de madeira raspando e do baixo tique taque do relógio preenchem meus ouvidos.
Então, digo a mim mesma em voz alta, como fazia todos os dias:
— 101 dias.
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Fragmentada (PAUSADA)
RandomHá exatos 257 dias, Julie Andrews, de 19 anos, não vê a luz do sol. Confinada em um quarto sem janelas, a enfermeira mantém a mente ocupada, buscando uma forma de não enlouquecer. Ou coisa pior. Sem qualquer contato com o mundo fora daquele quarto...