2. 234 dias.

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Já se passaram 234 dias nesse inferno de quatro paredes.
234 dias onde minha mente trava uma guerra comigo, onde a esperança está se fragmentando e se perdendo e virando pó.
Acabara de dar meia noite, o início de um novo dia, e mais uma vez me vejo apoiada na mesa com a faca na mão, raspando-a com a ponta da lâmina até que o novo risco fosse formado na madeira velha e escura.
Há dias eu lembrava com vivacidade a minha vida antes disso, ou sequer tinha vontade de lembrar.
Muitas vezes eu me pegava encarando a parede e pensando em nada, enquanto um enorme buraco se abria em meu peito.
Um buraco que minha mente exausta estava se alimentando, e tornando ainda mais difícil me manter firme.
Eu não estava firme. A esperança estava se tornando fina e frágil o suficiente para ser cortada com a navalha gentil da morte.
Quando o dia 212 chegou, foi a primeira vez que pensei em decepciona-los; deixá-los achar meu corpo sem vida estatelado no chão.
E tentei.
Por longos minutos segurei a faca na mão, a ponta afiada pronta para cortar em vertical o meu pulso esquerdo. Mas a coragem me faltou. A esperança me puxou novamente.
Assim que vagarosamente coloquei a faca na pia, pude escutar o leve chiar da janela da porta se abrir. Olhos Castanhos me olhando com atenção, mas não dirigiu uma única palavra para mim. O que me deixou altamente aliviada.
Depois que ele se foi, sentei-me na cama com as costas apoiadas na parede. Meus joelhos se tornaram minha mais fiel companhia e consolo, e choro enquanto o abraço. A noite toda.
Agora, eu apenas estava parando de lutar. Estava deixando a navalha cortar o fio de minha vida, devagar e gradativamente.
Eu podia ouvir, em algum lugar profundo e trancafiado de minha mente, a esperança gritar desesperada.
Mas hoje era um dos dias em que eu não a ouvia, não reconhecia sua existência, mas também não sentia dor.
Não sentia nada. Apenas o vazio.
Crio coragem para largar a faca na mesa e ir até o banheiro.
As leves dores no corpo me saudavam hoje, junto das pequenas marcas roxas no pescoço e o efeito colateral do que quer que me dessem para dormir — e como davam, até hoje, eu não fazia ideia.
Toda vez que as marcas apareciam, eu sentia vontade de por as tripas para fora.
Como se isso fosse me ajudar de alguma maneira, ou que fizesse as marcas sumirem. Isso não aconteceria.
As batidas na porta retornam, mas dessa vez algo é jogado pela pequena janela da mesma.
Um embrulho, em papel prateado e com um laço preto — minha cor favorita— grudado no presente.
Um presente. Se eu me lembrasse como era, provavelmente riria dessa situação.
Meu sequestrador, me dando presentes. Só podia ser algum tipo de piada sombria do destino. Oh do que quer que comandasse nossas vidas, nos iludindo sobre livre arbítrio.
Tudo está conectado e predestinado a acontecer, sempre acreditei nisso. Acredito ainda mais agora.
Não seria apenas azar, tudo isso que está acontecendo comigo.
Eu fui escolhida, de algum modo. Sei disso.
Ou talvez eu só esteja ficando louca.
Não me preocupo em abrir com cuidado o embrulho, apenas rasgo aquele maldito papel.
O livro dentro da embalagem me surpreendeu.
Era 9 de Novembro, da Coleen Hoover. Sempre tive vontade de ler esse livro, mas nunca tive tempo de o ler inteiro, parei bem no começo. Então ele sempre ficou guardado na minha prateleira de livros.
Estranho... o livro não parecia novo.
Eu sempre deixava pequenos marca páginas, para não esquecer em qual parte eu havia parado.
Este livro havia um, exatamente onde eu havia marcado no exemplar em minha casa.
Não... não era possível.
Havia também um post-it, marcando uma frase do livro, e um pequeno comentário.
Com a minha letra.
Minha.
Letra.
Ele sabia onde eu morava.
Conseguia entrar lá.
Eu nunca estive segura, nem por um segundo, nem em minha própria casa. Eu estava sendo observada e monitorada há dias, e sequer desconfiava.
Meu mundinho era colorido demais para prestar atenção nos tons de cinza.
E agora estou nessa situação deplorável e desesperadora, trancafiava em um cômodo com cerca de 10 ou 15 metros quadrados, no máximo.
Mas... ler um livro era melhor que deixar os meus pensamentos me condenarem.
Principalmente quando ler é uma paixão que cultivo desde muito cedo.
Eu estava abaixada no chão, os joelhos tocando o piso frio. Decido ficar por ali mesmo e me sento cruzando as pernas em forma de X.
Tiro o marcador e começo o livro novamente, apesar de nunca ter esquecido onde parei.
A leitura, como era de se esperar de Coleen Hoover, era sempre muito imersa e bem construída.
A história sempre me prendeu, desde a primeira linha da primeira página, a história manteve minha atenção nela. Uma pena minha falta de tempo ter prejudicado isso.
Quando começo a leitura, em pouco tempo eu já havia passado das cem primeiras páginas. Terminaria o livro mais rápido do que eu achei, até por que, agora o que não me faltava era tempo.
Cada palavra, cada capítulo daquele livro despertou em mim algo que eu não sentia há um bom tempo.
Algo dançou e ao mesmo tempo se apertou em meu peito. A boa e velha sensação de se ler um bom livro.
Infelizmente, o sono começou a me acariciar, murmurando para me render a ele e àquela cama horrível que me dava dor nas costas.
Infelizmente, eu já não era mais resistente ao sono.
Não tanto quanto aprendi a ser durante o estágio mo hospital.
Ah... o hospital, que falta eu sentia de lá. Principalmente das amizades que eu estava começando a fazer lá.
Infelizmente minha melhor amiga Kayla mora há três horas de NY. Ela era mais velha e já havia se formado na faculdade de enfermagem, graças a seus esforços, ela foi convidada para uma entrevista em um hospital renomado de Boston. Ela passou, e nesse momento deve estar conquistando médicos com seus cachinhos negros.
Me orgulho dela.
Ela, por outro lado, deve pensar que estou morta.
Todos devem pensar isso.
Todos os meus colegas de trabalho; Margaret Müller, minha chefe, responsável por todas as enfermeiras no andar das alas cirúrgicas. Gavin Morris, o ortopedista que sempre foi gentil comigo. Que é gentil com todos, na verdade.
E algumas das meninas da enfermagem, as quais eu mal me lembrava o nome ou aparência.
E duvido que sairei daqui para poder me lembrar de seus rostos.
O relógio soa meia noite e me tira do transe de meus pensamentos e fecho o livro.
Me ergo do chão frio e incrivelmente acolhedor, me sento na mesa, e marco mais um dia.
— 235.
Falar em voz alta me ajudava a não esquecer essa coisa tão simples.
Agora com o livro, eu leria em voz alta para não me esquecer de como é falar, ouvir minha própria voz além dos meus pensamentos.
Depois de tanto tempo sozinha, sem nunca falar com ninguém, apenas escutando minha mente que já ficará deturpada, fico realmente surpresa por não ter esquecido como se fala, ou pior, não ter enlouquecido.
Talvez eu esteja louca.
A maioria dos loucos desconhece sua insanidade. Então talvez eu já esteja insana e sem razão.
Talvez já esteja perdida.

Fragmentada (PAUSADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora