5. Rastros de Sangue

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Eu não sabia como o dia havia amanhecido. Olhando pela pequena janela no teto parecia nublado, com um pouco de sol. Mas eu não saberia dizer com certeza se de fato estava assim.
Eu nem me lembrava mais como era sentir a luz do sol no rosto.
Jamais pensei sentir falta do cheiro péssimo da cidade. Dos barulhos dos carros, as conversas das pessoas nas ruas.
A confusão e a correria do hospital, como eu sentia falta da minha rotina, da minha vida.
Provavelmente a polícia já deve ter parado de me procurar, isso se sequer algum dia começou a busca.
Era tão difícil não quebrar o espelho e fazer um corte no pulso.
Me sufocar com o travesseiro não havia dado certo, meu próprio corpo mandava um alerta e me obrigava a parar.
Também não dava para me enforcar com lençóis, não havia sequer um lugar para amarra-los e me pendurar, deixando que meu pescoço quebrasse, levando a vida consigo.
Há dois dias eles vieram, na calada da noite mais uma vez, para não serem vistos, e tiraram tudo que poderia ser cortante. Não havia mais pratos, talheres, copos.
Mas eles mal sabem que eu não pretendo me matar, não aqui, ao menos.
Meu corpo vai perecer, irá cair sem vida. Inerte. Frio. Mas não nesse lugar. Me recuso a morrer aqui.
Não batalhei para conseguir entrar no curso e no hospital para que eu acabasse morta aqui.
Meu sequestrador me queria viva, se quisesse me matar, já teria feito depois de me usar como brinquedo pessoal pela segunda ou terceira vez.
Mas eu não havia deixado de lado a opção de decepciona-lo. Mas também não era uma decisão definitiva.
Não. Eu tinha outro plano. E ele daria certo se eu fizesse direito.
Peguei a vassoura e comecei a varrer o chão. Eles não são totalmente inteligentes, eu poderia quebrar a vassoura e usar um de seus pedaços para me matar.
E era o que eles pensariam.
Tirei o cabo da parte de baixo da vassoura e a deixei excluída em um canto, a madeira estava morna em minha mão e ao mesmo tempo fria. A deixei com a ponta apoiada no chão e em posição o diagonal. Mal vi a força que coloquei, junto com toda a raiva e frustração que eu estava sentindo presa nesse inferno.
Estar presa ali era como respirar debaixo d'água, quanto mais ar você puxa, mais você se afoga.
Eu estava afogando, cada dia mais o meu corpo perdia as forças, minha mente me dava uma surra.
Mas meu orgulho e a raiva que estou desses filhos da puta ainda não me deixaram tirar minha vida.
  Com um pisão forte e rápido, a madeira se partiu em dois, algumas farpas caíram no chão e as deixei ali mesmo. Eu não mais limparia aquele lugar, não mais séria prisioneira ali.
Com uma lasca de madeira corto meu antebraço, longe das veias, mas fundo o suficiente para que o sangue pingasse. Foi difícil não grunhir de dor quando a madeira cortou minha pele, rasgando até mesmo um pouco da carne.
Quando eu saísse dali, cuidaria para que não infeccionasse.
Com o sangue pingando no chão, fiz uma trilha até o banheiro e fechei a porta, mantendo uma metade do cabo de madeira comigo e a outra no chão, onde se encontrava o começo do rastro que criei.
A hora do almoço estava quase chegando. 10 minutos até aquela janela na porta ser aberta e a vasilha com comida passar por ela.
10 minutos para Olhos Castanhos cair na minha armadilha.
Antes de sair da porta do banheiro, rasgo a blusa que estou vestindo e uso o pedaço de pano para estancar o sangramento.
Caminhei em direção a porta, ficando encostada na parede de modo que quando ela abrisse eu estaria atrás dela.

Esse foi os 10 minutos mais longos da minha vida, pareciam uma eternidade para ser sincera.
  Até que ouvi a janelinha se abrir e logo em seguida se fechar, o trinco da porta foi destravado.
Segurei firme o pedaço de madeira e me apertei mais contra a parede.
A porta abriu finalmente, me ocultando da visão do homem que sempre me trazia almoço, cujo mesmo apelidei de Olhos Castanhos.
Pelo canto de olho consegui ver que ele estava chegando até o banheiro. Ele não olhou para os lados, e mesmo que olhasse, não me veria.
Meu coração estava batendo mais rápido do que um trem pode se movimentar, minha respiração estava quase nula apesar do nervosismo. Eu estava sendo treinada para situações difíceis. Claro, nada comparado a uma fuga de cativeiro, porém, eu poderia aplicar o método de se manter calma nessa situação.
Ele levou a mão enluvada até a maçaneta da porta.
Foi neste exato momento que passei a passos leves pela porta que ele entrou, e assim que ele abriu a porta do banheiro de uma vez, não encontrando nada e olhando ao redor do quarto foi que eu fechei a porta de aço e a tranquei.
Escutei vagamente os murros que Olhos Castanhos estava dando na porta, inutilmente. Eu mesma havia feito aquilo.
Me viro para trás e encontro um corredor vazio, ao olhar para o lado vejo janelas.
Eu estava em um prédio esse tempo todo.
A julgar pela situação da construção, era um prédio abandonado.
Mesmo assim, fiquei feliz de sentir o ar entrar em meus pulmões.
Seguro a madeira com as duas mãos e começo a correr para fora daquele inferno.

Fragmentada (PAUSADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora