Parte 3-2 • Changkyun

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Changkyun

Eu caio inúmeras vezes em minha caminhada aparentemente sem fim pela área 20785. Não há ninguém aqui, nem mesmo um animal correndo em terra ou voando no céu. Há trechos em que eu apenas escuto meus próprios passos, cada vez mais lentos e pesados, e minhas quedas, cada vez mais desengonçadas e perigosas. Eu me sinto tonto, com sede suficiente para beber água de poças em recipientes que estão jogados pelos cantos, com vontade de estirar meu corpo em qualquer lugar e dormir para sempre. Mas há aquela parte de mim que não desiste, que me move com dificuldade e bravura e que apenas me dá uma trégua quando piso em falso em uma calçada e machuco minhas mãos na hora da queda. Passo um longo tempo sentado com as costas apoiadas na parede, fitando os cortes na minha pele e os filetes de sangue, ainda pensando em Rainbow e em como ela foi destroçada ao ser descartada. Seria aquele o meu destino também?

Respiro fundo, fechando os olhos enquanto sinto todo o meu corpo latejando de dor, tanto pela caminhada quanto pelas quedas, lamentando que minha concentração não seja suficiente para imaginar Minhyuk como antes eu fazia a todo instante. Começo a contar os meses, mas não tenho certeza se tal contagem está correta: quase oito meses desde que ele foi levado de mim e mais ou menos quatro meses desde a morte forjada de Hyunwoo. Será que eles estão juntos em algum desses prédios? Será que eles haviam sido feridos e descartados como Rainbow?

Milhões de hipóteses surgem em minha mente, mas não posso pensar e avaliar todos eles. Escuto o som de uma garrafa sendo quebrada, um som longínquo, que só se fez notável por causa das risadas que ecoam em seguida e isso me faz ficar alerta. "Fique vivo o máximo de tempo que puder", foi o que Hoseok me disse e diversas vezes me contou que estar ali podia ser realmente perigoso. Os risos começam a aumentar, indicando que os donos deles estão se aproximando do lugar onde eu me encontro. Faço força para me levantar, deixando-me ser tomado por meus instintos e me coloco a correr o mais depressa que posso, dessa vez não em linha reta como antes, mas adentrando por ruas estreitas que acabam por me conduzir para locais de aparência bem diferente daqueles que eu já havia visto naquelas poucas horas. Está ficando escuro também, o que contribui para os novos aspectos dos edifícios e mobiliários que, como Rainbow, se mostram abandonados, vítimas de uma fera chamada tempo.

Há luz artificial nessa parte da cidade - se é que eu posso chamá-la assim. Olho para os prédios altos e para janelas em busca de alguma alma viva, mas se houvesse alguém ali, certamente estaria muito bem escondido. Paro de correr quando encontro o térreo de um edifício repleto de colunas e me escoro numa delas para recuperar o fôlego. Meu estômago dói mais do que nunca e eu já não sinto mais os meus pés. Minhas mãos estão ardendo por causa dos cortes e minha cabeça gira como se eu estivesse sendo transportado no tempo. Tenho vontade de gritar e pedir por ajuda, mas não haveria ninguém para me socorrer, muito pelo contrário, se eu chamasse atenção talvez pudesse acabar morto.

Escuto uma risada ao longe e não acredito que sou tão azarado a ponto de escapar uma vez para cair em outra roubada logo em seguida. Sinto vontade de chorar porque estou ficando desesperado. Não sei por mais quanto tempo eu aguento correr. Vejo sombras na parede e sei que há alguém por perto. Quem quer que seja, irá me encontrar, eu penso, mas não me movo. Espero e percebo que eu não serei notado porque a sombra tem uma distração: são duas pessoas ali e uma delas é tão vítima quanto eu, mas havia sido pega. Escuto os murmúrios baixos e percebo que se trata de um garoto. Olho em volta e vejo garrafas vazias largadas num canto. Não sei de onde tiro energia para isso, mas em questão de segundos, agarro uma das garrafas e corro em direção às sombras, ao movimento, aos risos e murmúrios de súplica, e miro na figura encapuzada que está se divertindo até então.

Em toda a minha vida, eu jamais havia machucado alguém, mas, nesse instante, uma parte minha que eu não conhecia se manifesta de forma incontrolável. Quando fito os olhos do garoto, não posso nem ao menos dizer o seu nome, porque minhas mãos estão ocupadas golpeando aquele cara que tentou machucá-lo minutos antes e minha garganta arranha com meus gritos de ira. Cinco, seis, sete vezes eu o corto com o vidro que também fere minhas mãos e então ele cai aos meus pés, se contorcendo. A garrafa quebrada estatela-se ao chão e só então eu posso voltar a mim mesmo, encarando os olhos assustados de Minhyuk, que parece em choque.

Ouço outra voz ao longe e sei que temos que dar o fora daqui o mais depressa possível. O rapaz que eu feri está murmurando e com um pouco mais de força conseguirá gritar alto o suficiente para nos dedurar. Não penso e apenas agarro Minhyuk pela mão e nós corremos juntos por entre as colunas, até que nossas sombras param de ser projetadas na parede por conta da falta de luz. Paramos e eu o puxo para mim, dando-lhe um abraço apertado, notando que ele treme e que está em silêncio porque isso nos ajuda a despistar quem quer que tenha tentado nos seguir. Durante aqueles minutos, eu finalmente posso sentir o alívio em tê-lo em meus braços, uma tranquilidade que parece pigmentar meu corpo de dentro para fora como um papel absorvendo uma grande quantidade de aquarela. Eu o encontrei exatamente quando tinha perdido todas as esperanças e agora tudo está voltando a mim numa avalanche estrondosa.

Deixo escapar um sorriso, mas não tenho tempo suficiente de realmente expressar o que eu sinto, porque o clima muda drasticamente no instante em que Minhyuk se afasta de mim com um empurrão, fazendo-me bater com as costas na parede.

- Minhyuk, o quê...?

- Como sabe meu nome?

- Você... não se lembra...?

Sou cortado pelo som de passos e pela voz do cara a quem eu havia ferido ao longe gritando por ajuda. Minhyuk parece ainda mais tenso e olha em volta, como se procurasse por alguma saída. Ele está aqui há tanto tempo que me faz pensar que aprendeu truques ou atalhos para se safar das armadilhas que estão por toda parte e não tenho dúvidas quanto a isso no momento em que sinto sua mão apertar meu pulso e me puxar com ele. Nós não corremos, mas nossos passos são apressados. Passamos por mais alguns pilares até chegar a uma rua estreita e escura. Ele me guia pela calçada, nossos braços roçando nas fachadas dos edifícios como se fôssemos apenas duas sombras correndo de nossos próprios corpos. Eu sinto certo orgulho por ele estar me passando a sensação de que sabe exatamente o que está fazendo, mas ainda estou surpreso com o fato de que ele não parece saber quem eu sou. Penso em pará-lo algumas vezes, sentindo que estamos a salvo, mas ele continua firme em sua caminhada, sem afrouxar o aperto em meu pulso em nenhum momento. Nós dobramos duas esquinas e ele me põe para dentro de um dos edifícios. Larga-me, começa a subir pela escada e eu o sigo.

Minhyuk para num dos andares e ruma até uma das portas do corredor, abrindo-a e adentrando o apartamento. Faço o mesmo e paro bem perto, pronto para voltar a trocar palavras com ele.

- Minhyuk...

- Você também é de Soul? - ele me interrompe. - Você... como você...?

- Ah, Minhyuk... - eu me sinto desesperado e não consigo proferir frase alguma. Tento imaginar se aquilo teria sido obra de Hoseok, de Hyunwoo ou daquele lugar, mas começo a me sentir tonto, como se eu estivesse desaparecendo assim como desapareci da mente dele. A última coisa da qual me lembro é da voz de Hyunwoo ecoando no cômodo enquanto meu joelhos fraquejam e eu apago.

20785Onde histórias criam vida. Descubra agora