6 - O TREM E A VELHINHA

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Após uma noite turbulenta, Júlia e Dom foram acordados para o café da manhã. Voltaram para o restaurante e se sentaram na mesma mesa da noite anterior.

Júlia observou a paisagem, agora banhada pela luz do sol. Ela viu colinas e mais colinas verdejantes e, ao fundo, montanhas azuis que vira em Tão Perto. Já haviam deixado a cidade, e agora se via apenas pequenas casas e muitas plantações.

O trem passara em Tão Perto, parado em Tão no Meio, onde Júlia e Dom embarcaram, e seu destino agora era Tão Longe. Júlia viu a mudança de vegetação quando chegaram nas terras que imaginou ser de Tão Perto; era seco e árido se comparado às florestas densas de Tão no Meio. Ficou imaginando como seria a vegetação em Tão Longe.

Frio? Talvez tenha neve.

Ficou entusiasmada para saber como era Tão Longe. Nunca tinha visto neve na vida. Pegou seu novo caderninho imaginário para anotar as coisas recentes que haviam acontecido.

Um: acordei na casa de estranhos. Dois: segui um calango rumo a lugar nenhum. Três: entrei numa árvore com um estranho. Quatro: desci num túnel com vaga-lumes fantasmas. Cinco: falei com um morcego.

Nada tão louco aconteceu depois disso. Ou era Júlia que estava se acostumando com tudo aquilo? Ela se lembrava nitidamente do que acontecera desde que havia chegado ali. O problema era lembrar-se do que tinha acontecido antes disso.

Sua memória era sempre excelente e, no entanto, agora parecia um borrão. Como num sonho. Não se lembrava de cheiros ou imagens nítidas. Apenas sabia que havia um presente. Um shopping. Sua irmã. Eu havia feito aniversário ou ela? Talvez Júlia tivesse sonhado a vida inteira e só agora acordado.

Era assustador pensar que podia ser verdade. Tudo que estava vivendo ali era tão real. E, se sua vida antes disso fosse real, deveria conseguir lembrar. Se isso era um sonho, por que ela não acordava? Ela se parecia com Dom agora. Confusa.

A comida chegou, e comeram mais uma vez em silêncio. Mesmo que Júlia quisesse conversar, Dom estava com a boca sempre cheia, de modo que apenas se divertia em vê-lo se alimentar.

No entanto, seu sorriso bobo se desfez ao ver uma senhora que estava saindo do vagão. Como lembrava? Nem ela sabia, mas era a única pessoa conhecida que via nesse lugar. Era a senhora que tinha lhe vendido a máquina fotográfica a preço de banana.

Seu cérebro ativou o modo improviso, e, de forma urgente, disse a Dom:

— Já volto.

***

Júlia acertou muitas pessoas pelo caminho enquanto corria em direção àquela senhora. Ela poderia explicar-lhe toda a situação. Talvez tivesse sido aquela velha que havia ajudado no seu sequestro para esse lugar. Talvez só estivesse sonhando com a desconhecida. Ainda assim, queria saber.

Como se adivinhasse sua pressa, um homem alto, forte e muito bonito a parou no caminho.

— Ei. Para onde vai? Por que corre tão rápido?

— Preciso ir ao banheiro — mentiu.

— Ah, eu poderia acompanhá-la até lá, se quiser.

Nossa, que sujeito esquisito. E muito bonito. Quem sabe eu deixe ele me acompanhar. Não, Júlia! Você tem coisas mais urgentes para resolver.

— Ah, não quero companhia, obrigada — tentou dizer sem parecer grosseira.

— Ah! Já sei. Você é a namorada daquele sujeito, não é?

Ele apontou para Dom.

— Com licença — Júlia pediu novamente.

O rapaz a deixou passar, mas a essa altura Júlia já havia perdido a senhora de vista. Continuaria a procurar, já que do trem ela não sairia. Andando pelo vagão da sala de jantar, notou que algumas pessoas a observavam, cochichavam entre si e voltavam a olhar para ela. Júlia passou a mão no cabelo e fitou suas roupas. Estava tudo normal. Por que estão olhando para mim?

A Dona do Castelo 1- O Duque de Tão LongeOnde histórias criam vida. Descubra agora