Bordas Negras

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H A R R Y

Desaparecer no escuro. Esse era o meu plano. Que merda de plano. Louis foi embora na manhã seguinte ao funeral do meu pai. Passei as quatro semanas seguintes em Silt. A tela do meu filme pessoal do Velho Oeste deveria ter terminado. Acabou o show. Bem-vindo ao resto da sua vida. Aproveite seu tempo neste paraíso de torpor emocional. Beba algumas cervejas. Trepe com alguns garotos e garotas. Divirta-se. Meus delírios deveriam me proteger. Afinal, por que eu deveria me preocupar? Por que deveria ter receio de não conseguir comprar comida para a minha família? Ou medo de que a minha irmã caçula tussa os pulmões para fora devido à laringite? Ou pavor de morrer sozinho e nunca mais fazer amor com o único homem que eu desejo?

É sempre uma droga. É uma droga e nunca deixará de ser. Nunca chegará ao fim. Não há uma cortina para cair e esconder tudo. É como Louis disse: há algumas coisas tão terríveis que não deveríamos precisar passar por elas, mas precisamos. Somos nós que precisamos senti-las, que precisamos suportá-las. É a nossa vida para ser vivida, quer queiramos ou não. Voltei para Silt e fui trabalhar.

Voltei para o meu zimbro e pensei no futuro pela primeira vez em meses. Pensei em Louis. No que ele havia dito. No que eu havia feito a ele. Pensei em quanto me esforcei para evitar que ele me visse aqui, lutando para não desmoronar. Não consegui suportar o que ela me disse. Não consegui suportar o que armei para ele e a vergonha que senti quando ele não chorou nem gritou, e eu me dei conta de que estava tentando forçá-lo a mudar de ideia sobre mim porque não podia simplesmente lhe contar a verdade.

Eu o amava. Todo dia, toda hora, toda porra de minuto, eu o amava. E, mesmo o amando, eu o magoei, porque achei que precisava fazer isso. O que mais o faria ir embora? Um homem inteligente como Louis, leal, carinhoso – ele teria feito qualquer coisa por mim, inclusive ficar. Viva o Harry, por descobrir o que precisa fazer para mandar o amor da vida dele embora.

Comer Rita Thompson contra a porta da caminhonete de Bo – isso vai resolver a questão.

Eu estava com nojo de mim mesmo. Eu me odiava. Mas, meu Deus, eu amava Louis. Ele sempre foi mais corajoso do que eu. Melhor do que eu, mais inteligente, capaz de ver o âmago das coisas. Ele olhou para mim e viu um homem que valia a pena salvar, mas eu já havia decidido não ser salvo. Eu o mandei para o mais longe possível de mim, porque precisava ficar em Silt. Esse foi o roteiro que recebi quando entrei no set. Só que reli o roteiro depois que Louis foi embora, com o cadáver do meu pai debaixo da terra, dentro de um caixão que comprei com dinheiro de tráfico, e me dei conta de que eu nunca fui a porra do xerife. Ninguém com o mínimo senso de justiça ou correção teria feito aquilo com ele. Eu havia feito. O que isso me tornava?

Tenho uma lista na minha cabeça: “Merdas que precisam ser resolvidas”. No topo da lista está “situação de moradia”. Então, na segunda-feira da semana do funeral, passei pela casa da minha avó depois do trabalho para conversar com a minha mãe. Ela estava no sofá, enrolada em uma manta. A TV estava ligada, mas ela não parecia estar assistindo. Ela estava acabada, na verdade. Com os cabelos oleosos, como se não lavasse havia dias, e o esmalte lascado nas unhas dos pés.

– O que está passando?

– Porcaria. Pode mudar, se quiser – responde ela, me passando o controle
remoto.

Passo rapidamente por alguns canais. Eu havia pedido a minha avó que levasse Gemma para comer um hambúrguer para termos um momento a sós, mas, sentado ao lado dela, percebo o erro que cometi. Prevejo os humores da minha mãe como o clima. Mas não é o humor dela que me preocupa. É o meu. Há uma nuvem negra sobre a minha cabeça. Se eu achasse que poderia adiar essa conversa por mais uma ou duas semanas, adiaria.

– O seu namorado se mudou para a casa do Bo?

– Não. Ele foi para casa.

– Achei que ele ia ficar por aqui, pela forma como olha para você.

IntensoOnde histórias criam vida. Descubra agora