CAPÍTULO 23

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Eu conheço a expressão no rosto de Galen. Não porque eu já tenha visto isso antes, mas porque eu já tive o mesmo olhar. Os mesmos sentimentos que espreitam atrás da expressão.

Primeiro, sua mente está queimando. Você não pode aceitar que esta pessoa que estava com você no café da manhã está morta agora. Ela está flutuando em seus braços, e ele suavemente acaricia sua bochecha como se de alguma forma seus olhos fossem se abrir. Às vezes as ondas
cutucam sua cabeça, então parece que ela se moveu. Mas ela não o fez.

Logo, as memórias dela irão inundá-lo. Sua rotina diária normal, a maneira que ela sorria, sua comida favorita. Depois que morreu, eu me lembrei da maneira que Chloe pulverizaria seu perfume no ar três bons segundos, então andava na névoa. Coisas simples e cotidianas que os tornavam a pessoa que estavam em seus olhos. Mesmo agora, eu me lembro da maneira perita em que Rachel cozinhava de saltos altos.

Então, com todas as memórias vem a culpa. Você se lembra de todas as oportunidades que teve — e perdeu — para mostrar que as amava. Eles sabiam? Eles realmente sabiam o quanto eu me importava com eles? Eu me censurava o tempo todo quando papai morreu. Eu poderia ter sido muito melhor. Eu poderia ter ajudado ele mais com pequenas coisas. Como lavar seu carro sem reclamar por uma única vez. Quando ele deixou sua xícara de café na pia, teria me matado apenas lavá-la e guardá-la? Eu poderia ter escutado melhor quando ele falou sobre sua infância. Dizer-lhe "eu te amo", sem que ele tenha me dito primeiro.

Isso, a culpa será a parte mais difícil para Galen. Ele já assume a responsabilidade por tanta coisa que não são culpa dele. Ele vai se culpar por causa da morte de Rachel. Ele vai cair em uma espiral de remorso, em um poço cheio de arrependimentos.

E eu silenciosamente prometo-lhe que o pegarei quando ela chegar.

Os Rastreadores em torno de nós trabalham em silêncio respeitoso, reunindo os sobreviventes humanos em barcos, prontos para enviá-los em seu caminho para a próxima ilha. O plano
original era nadá-los, mas desde que alguns dos barcos puderam ser recuperados, decidiu-se que seria melhor deixá-los irem sozinhos. Afinal, eles têm uma história fantástica para contar, e conduzi-los ao longo só iria dar credibilidade a ela.

Quando os barcos decolam, Grom pede que todos mergulhem. Nós o seguimos quietamente e nos reunimos ao redor dele no fundo do oceano. Apenas Galen permanece na superfície. E Rachel.

— Esta área está fora dos limites do nosso tipo — diz Grom. — Os seres humanos nos viram aqui, e suas histórias se espalharão para mais humanos. Alguns irão acreditar neles, outros não. Aqueles que fazem podem vir a investigar. Não lhes daremos nada para encontrar aqui.

Seu comando é recebido com solenes acenos de cabeça.

— Vocês também devem perceber, — ele continua. — que é apenas uma questão de tempo agora antes que isso aconteça novamente. Talvez não em nossa geração, talvez não na próxima. Mas o tempo está chegando quando os humanos nos encontrarão. Todos nós devemos pensar sobre o que isso significa para nós individualmente, mas o mais importante,
para a nossa espécie. Vão para casa agora, para suas famílias. Diga-lhes o que aconteceu. Fale com eles sobre o que poderá acontecer.

A multidão de Rastreadores e outros voluntários se dispersam e nós ficamos sozinhos uns com os outros e nossos pensamentos.

Mamãe envolve seus braços em torno de mim, com cuidado para evitar a minha ferida.

— Como você está segurando? — Ela sussurra. Eu escolho os ombros. Não há verdade em um encolher de ombros. A verdade é que não há resposta.

— Eu também — diz minha mãe. — Eu também.

— Acho que Toraf deveria ir para a casa de Galen para se recuperar — diz Rayna a Grom. Não há luta nela. Apenas palavras e sentimentos. — Eu acho que devemos pedir ao Dr. Milligan para vir vê-lo.

Grom concorda. Ele também não está no clima de conflito.

— Eu acho que você está certa, irmãzinha. — Ele faz gestos para os Rastreadores que mantêm um Toraf inconsciente em seus braços. — Leve a Princesa Rayna e seu companheiro onde quer que ela peça. — Ele se vira para sua irmã e pressiona um beijo rápido em sua testa. — Mande palavras se você precisar de alguma coisa de mim.

Mamãe envolveu o lado de Toraf com algas marinhas para evitar o sangramento, mas uma pequena mancha vermelha está começando a transbordar. Ele teve uma estreita ligação e todos nós sabemos disso. Só porque seus órgãos foram poupados não significa que seus músculos vão curar corretamente. Eu não tinha pensado em chamar o Dr. Milligan. Estou contente que Rayna o fez. Além disso, o Dr. Milligan vai querer ser atualizado sobre todos os eventos mais recentes. E temos que contar a ele sobre Rachel.

Rayna joga os braços ao redor de Grom num abraço feroz e curto.

— Eu vou. Eu realmente vou.

Isso me choca um pouco. Até mesmo mamãe aprecia a atualização óbvia em seu relacionamento — e ela nem sequer gosta de Rayna. Ela dá outro aperto no meu ombro. Eu acaricio sua mão e me inclino nela. Nós todos passamos por tantas coisas. Mas nós passamos por isso juntos. Até mesmo Grom e Rayna são gratos um pelo outro hoje.

Quando Rayna e os Rastreadores saem, Grom olha para cima. Então ele deixa seu olhar se fixar em mim.

— Jovem Emma. — Não soa condescendente em tudo, a maneira como ele diz. Apenas nostálgico. — Os gêmeos precisarão de você agora. Mais do que eles imaginam. — Ele se aproxima mais de mim, pensativo. — Foi difícil para eles quando perdemos nossa mãe.
Perder a Rachel é... Eles sofreram uma grande perda hoje.

Eu respiro fundo. Se não estivéssemos debaixo d'água, as lágrimas estariam derramando pelas minhas bochechas em vez de ficar paradas acima da corrente suave. Eu me pergunto quantas lágrimas o oceano engoliu, o quanto do oceano é realmente feito de lágrimas.

— Grom, eu odeio perguntar algo assim, mas o que vamos fazer com seu corpo? — Mamãe diz.

— O que os humanos normalmente fazem com seus mortos?

— Eles enterram em terra ou os queimam. Mas os seres humanos têm regras e restrições sobre esse tipo de coisa. E Rachel não era exatamente... Rachel tem um passado complicado. Um passado que torna impossível enterrá-la adequadamente.

Posso dizer que isso já pesa sobre a mente de Grom. É este o tipo de coisa que os adultos pensam quando alguém morre, cuidar dessas coisas primeiro e sofrer mais tarde? Um olhar de compreensão passa entre Grom e minha mãe.

— Vou falar com o conselho sobre a Câmara dos Túmulos — diz ele. — Eu não acho que eles vão colocar uma grande resistência depois de hoje.

— Eu gostaria disso — Galen diz por trás de seu irmão. Eu nado até ele e ele me encontra na metade do caminho. Seus braços grandes me rodeiam. Não é um abraço de urso, nem um toque sensual. Parece que Galen está se apegando a mim por sua vida. Como se ele estivesse
preso em uma corrente e eu sou sua âncora.

— Eu sinto muito — eu sussurro em seu pescoço. As palavras quase se alojam em minha garganta. Ele me agarra ainda mais apertado e descansa o queixo no meu cabelo.

— Woden a tem — ele diz a Grom. — Até decidirmos o que é melhor.

Grom não responde. Na verdade, depois de alguns minutos, sinto os pulsos de mamãe e de Grom se afastando de nós. Depois de mais alguns minutos, não consigo senti-los. O único pulso que sinto é o de Galen. Batendo de encontro a mim, através de mim, em torno de mim.

As coisas mudarão sem Rachel. A vida não vai funcionar tão bem. Mas isso não vai mudar. A forma como nos encaixamos. A maneira como nos conhecemos.

Tritão - O Legado De Syrena 2Onde histórias criam vida. Descubra agora