pego a minha capa de chuva amarela e à aboto-a até o pescoço e junto o meu balde com todos os meus instrumentos de jardinagem dentro dele, saindo por aí com um anzol sob os braços pronta para qualquer coisa que queira me parar ou que me faça sentir que eu deveria. pesco pedaços de sol por aqui e por ali e vendedores ambulantes me agradecem, o calor aqui derrete desertos e transforma o nosso sangue antes somente rubro e morno, em algo tenro e quase comestível, o que é um nojo, pra falar bem a verdade.
hoje pela manhã eu acordei com a brisa fria no rosto, o que eu de fato não queria, porque eu odeio ser incomodada enquanto durmo, mas mamãe já saiu para o trabalho escancarando todas as janelas com a desculpa de que o apartamento iria ventilar. mas que se foda toda essa merda afinal.
já acordada mesmo, passei para a parte de reflexão matinal sobre o meu próprio espaço tempo e a minha existência despedaçada tipo espaçonave quando a decolagem dá errado.
desde então eu decidi que queria plantar flores na beirada do mar com a minha capa de chuva amarela, segurando um anzol, mesmo sabendo que o mar não tá pra peixe.
eu mesma gostaria de me desejar nesse momento, a liquidez - nada mais transparente que a água cristalina que nos forma à sua semelhança- e também, mais um bocado de pedaços de sol e que eu por favor, saiba usá-los, seja para fazer um estrondoso arco-íris ou para chover as mágoas e as transformações que a vida ainda vai jogar bem no meio da minha cabecinha de porcelana. eu não tenho medo da chuva, bem na verdade, andar sempre de capa é só mais uma parte da minha propria estética de jovem adolescente - gostar de amarelo e viver num lugar quente o bastante para que seja impossível andar por aí com uma capa de chuva - eu tenho medo de deixar de chover e perceber que o solo não comporta mais todas os meus lírios de água que eu presentearia ao sol. aí sim, tudo seria catastrófico.
mas por enquanto, não há nada que me amedronte senão a mim mesma e toda a minha vontade insaciável de viver o mais cotidianamente possível toda a magnitude que a natureza achar que eu posso aguentar em somente 15 anos de existência. nada mais me assusta do que olhares no espelho da vida com a rigidez inconfundível do chumbo me lambuzando dos pés a cabeça, recitando um soneto de shakespeare, com os labios cor de morte, falando sobre a fortuna descabida de um homem branco que não sabe mais o que fazer com tanto poder que lhe foi dado: não, não, não!
pra mim, nem que eu sente nos trilhos de um trem no meio do caminho, tudo é sol, água e mais sol. tudo que eu puder colocar dentro de mim e que puder plantar e ver florescendo na beira do mar salgado do atlântico, pertence aos dois e a mim também. o que me foi dado, o poder de viver e de se estender fielmente por florestas no inverno e campos de rosas cor-de-rosa na primeira semana da primavera: o incansável gosto de que algo algum dia não vai simplesmente vir até mim, porque se for para ser tola mais um bocado de vezes, eu prefiro ir andando até a minha própria lápide. mas irei feliz, cantando ao sol, louvando à água.