Heráclito de Éfeso (500 A.C.): "Vive-se da morte, morre-se da vida".
PRÓLOGO
Marcos estava deitado na cama sem mover um músculo. Apenas olhava para o teto do quarto. Uma luz suave que saía das delicadas sancas de gesso pouco abaixo do ponto em que o teto se encontrava com as paredes dominava o ambiente e o tom de azul claríssimo das paredes transmitia uma calma singular. Ele já perdera a conta das vezes em que ficava assim, recordando cada pedacinho daquela história, cada peça do quebra-cabeça, sem conseguir concluir se tinha terminado ou não, se era real ou não tudo aquilo...
Tudo o que descobriu, tudo o que lhe contaram, tudo o que viu...
SOPHIA
Mariana olhava-se no grande espelho do quarto, inspecionando a imagem: sandálias plataforma, cor de ouro velho. As unhas dos pés e das mãos impecavelmente bem acabadas, num tom quase negro. As longas e bem torneadas pernas (seu orgulho, e maior arma de sedução) com o tom obtido em algumas seções de bronzeamento artificial dispensavam meia-calça. O brilho da saia feita a partir de um vestido azul de festa, de paetês, e da blusa frente-única dourada de tecido semelhante, davam a impressão de que estava coberta de jóias. Mas ela ainda não estava satisfeita. Revirou as coisas que guardava na gaveta do criado-mudo procurando algo que servisse como complemento. Era o que faltava, uma singela gargantilha com pingente de strass para completar o brilho.
Nova inspeção no espelho. Os olhos de safira aprovavam o resultado agora. Como sempre, um retoque no batom, uma mexida nos longos cabelos anelados, castanhos, e estava pronta para sair. A partir desse momento não atendia mais pelo nome de batismo: Mariana Silveira. Tornara-se Sophia, assim mesmo, com “ph” que ela fazia questão de frisar, nome emprestado de um livro que lera pouco tempo antes de optar pela mais antiga das profissões. Na verdade, poucas pessoas sabiam seu verdadeiro nome. Mariana só existia ainda para os tios que a criaram e viviam no interior de Mato Grosso, com quem se correspondia muito raramente, sendo para ela própria hoje quase uma estranha. Uma vez até lhes enviara um cartão postal de Bariloche, onde havia estado a serviço, assinado com o nome Sophia. Depois explicara dizendo ter sido brincadeira.
O trabalho nas noites de São Paulo rendia até bem, mas necessitava de investimento constante. Roupas, maquiagem, bons perfumes, dentista, salão… Tudo para manter a qualidade do produto, pois os clientes exigentes é que pagavam mais, e ofereciam quase sempre melhores condições de trabalho. Além disso, a concorrência era acirrada. Comentava sempre que uma vez um sujeito havia dito que elas poderiam dar aula de marketing, tal a dedicação que tinham em agradar sua clientela, tudo fazendo para satisfazer – “Encantar o cliente é uma arte que vocês, meninas, dominam como ninguém!”.
No percurso de ônibus entre o pequeno apartamento e o centro da cidade, como sempre ela divagava. Que teria acontecido se não tivesse saído do Mato Grosso? Ou se tivesse realmente estudado, como dizia aos tios. Ou ainda, se tivesse forçado o Toninho, filho do fazendeiro dono de todas as terras que ela conhecia na época, a aceitar o filho que fizeram nas cocheiras, ao invés de ceder ao velho pai dele quando pediu para tirar? Tantos caminhos diferentes… Mas a realidade veio acordá-la na voz de um gordo bigodudo e suado: “Aí, boneca. Cê trabalha aqui perto, né? Vai descer logo? Se tiver precisando de companhia, e não cobrar caro…”.
- Vê se te enxerga que não sou pro seu bico, bujão! – E já foi se levantando e tocando o sinal para descer. A noite ia ser longa ainda…
Após descer do ônibus, sob os palavrões do gordo e dos gestos obscenos que ele fez pela janela, que ela viu mas fez questão de ignorar, pegou na bolsa um Hall´s de cereja e seguiu altiva pela calçada em direção ao seu ponto, perto do Palace Hotel. As sandálias faziam um ruído característico e ritmado ao baterem no cimento da calçada, mas ainda estava cedo e com o movimento das ruas, o som era quase imperceptível. São Paulo sempre foi impressionante para Sophia, mesmo agora, após cinco anos de sua chegada. Ficava fascinada pelas luzes dos prédios, os néons, o fluir dos carros e a fauna noturna da metrópole. Pena que a poluição fosse indissociável do cenário… O centro, mais precisamente perto do Teatro Municipal, da rua Sete de Abril ou próximo ao Viaduto do Chá, parecia evocar Nova York. Ela nunca havia estado lá, mas tinha visto algumas fotos em revistas e algumas imagens na televisão, e sempre achava semelhante o cenário.
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Cross - A ascensão de Sophia
VampireCross Associados é uma empresa de investimentos tão misteriosa quanto seus poderosos proprietários, como Christian de Gramont, o vampiro líder da Irmandade no Brasil e principal acionista da Cross, que em suas caçadas solitárias pela noite paulistan...