Depois da chegada dos jesuítas ao Brasil, certamente o mais célebre missionário franciscano foi o irmão leigo Frei Pedro Palácios.
Palácios deve ter nascido nos anos de 1500, em Mediria, perto de Salamanca, na Espanha. A respeito da origem familiar, não há dados certos. Ingressou na província franciscana de São José. O ano exato e as circunstâncias da sua travessia do Atlântico continuam desconhecidos. Frei Pedro desembarcou em Salvador da Bahia, onde iniciou a atividade missionária. O padre José de Anchieta, grande admirador de Frei Pedro, disse sobre ele:
"Na Capitania do Espírito Santo, há duas vilas de portugueses perto uma da outra meia légua por mar. Em uma delas, que está na barra e chama Vila Velha por ser a primeira que ali se fez, está, num monte mui alto e em um penedo grande, uma ermida de abóbada, que se chama Nossa Senhora da Penha, que se vê longe do mar e é grande refrigério e devoção dos navegantes, e quase todos vêm a ela em romaria, cumprindo as promessas que fazem nas tormentas, sentindo particular ajuda da Virgem Nossa Senhora. Esta ermida edificou-a um castelhano sem ordens sacras, chamado Frei Pedro, frade dos Capuchos, que cá veio com licença de seu superior, homem de vida exemplar, o qual veio ao Brasil com zelo da salvação das almas, e com ele andava pelas aldeias da Bahia em companhia dos padres. Com este mesmo zelo se foi à Capitania do Espírito Santo onde fez o mesmo algum tempo, confessando-se com os padres e comungando a miúdo, até que começou e acabou esta ermida de Nossa Senhora com ajuda dos devotos moradores, e ao pé dela fez uma casinha pequenina à honra de São Francisco, na qual morreu com mostras de muita santidade". O belo relato de Anchieta apenas não revela o quanto tal santidade custou a Frei Pedro.
Pedro se tornou o primeiro missionário jesuíta no Espírito Santo em 1551. Antes mesmos dos jesuítas iniciarem as missões, ele já havia começado o trabalho de catequese dos indígenas da região.
Os Aimorés viviam em paz com os europeus, mas continuavam pagãos. Frei Pedro Palácios começou a visitá-los regularmente e a instruí-los na doutrina cristã. Acompanhado de um jovem, chamado André Gomes, Pedro fazia longas caminhadas até as malocas mais afastadas. O Frei permanecia pelo tempo necessário para instruí-los e prestar-lhes a assistência exigida pela caridade cristã.
Como Frei Pedro não era um sacerdote, não podia conceder sacramentos como o batismo. Limitava-se a mostrar a pregar o evangelho. Até o dia em que Teçá bateu em sua porta.
Teçá era um poderoso guerreiro Aimoré. O botocudo, como eram chamados os Aimoré pelo povo de Vila Velha, era famoso por sua força, assim como por sua violência.
No século 16, o termo psicopata ainda não havia sido cunhado, tampouco a psiquiatria. O fato é que Tiçá, o filho do pajé da tribo, era um guerreiro tomado por uma inexplicável sede de sangue. Particularmente sangue humano. Depois de uma longa lista de mortos entre as tribos vizinhas, Tiçá começara a fazer vítimas dentro da própria comunidade.
Naquela noite de tempestade, não era a mão poderosa de Tiçá que batia à porta do Frei Pedro. Era Iberê, seu pai e pajé dos Aimoré que trazia o filho pelo braço ainda salpicado do sangue da última vítima.
Quando o Frei abriu a porta e encarou os dois índios encharcados de chuva, lágrimas e sangue, percebeu que talvez Deus tivesse colocado um desafio grande demais em seu caminho. Mas o Frei sabia que não receberia uma cruz que não fosse capaz de carregar.
Acolhidos da noite chuvosa, começaram as explicações. Iberê trazia lágrimas nos vincos do rosto marcado pela idade. O filho estava tomado por espíritos malignos. O pajé tentara de tudo, sem sucesso. O que quer que estivesse assombrando o jovem, parecia ser imune aos feitiços da tradição Aimoré. Restou apenas tentar o deus do homem branco. Especialmente depois de encontrar o filho devorando o braço mutilado de uma criança da própria tribo. As tradições exigiam que Tiçá fosse sacrificado. Mas Iberê sentia que não seria capaz de executar o próprio filho.
Comovido com a história, o Frei olhou no fundo dos olhos do gigante canibal e viu algo que lembrava remorso. Talvez por compaixão, talvez tentado pela oportunidade de influenciar a catequização dos Aimoré, Frei Pedro cometeu o pecado que marcaria seu destino: perdoou Tiçá em nome de Jesus, apesar de apenas padres ordenados podem conceder o perdão através do sacramento da confissão, de acordo com as regras da Igreja Católica.
Tiçá abraçou o frei soluçando. Afirmou sentir que um peso enorme se erguera do seu peito. Acalentado pelo pai, o índio partiu aparentando ser uma nova pessoa, renascida em Cristo.
Naquela noite, Pedro voltou para a cama com a convicção de ter salvado uma vida. Mas nunca mais conseguiu dormir em paz.
Durante a madrugada, Pedro sonhou com imagens aterradoras. Monstros, demônios, almas torturadas. Rituais de sangue. Sonhos regados em morte. Pesadelos impossíveis, dos quais o Frei parecia incapaz de acordar.
Pela manhã, o exausto Frei tentou esfregar os olhos e sentiu os dedos úmidos. Pensou ser suor, mas o cheiro metálico gelou-lhe alma. Sua mão estava estava coberta em sangue fresco.
Pedro pulou da cama com um grito. Procurou ferimentos pelo corpo, sem sucesso. No reflexo da janela viu a própria imagem, o rosto marcado pelo sangue das mãos. Depois de um banho e uma novena trêmula, o Frei tomou coragem de deixar seus aposentos.
Descobriu que uma menina Aimoré estava desaparecida. E se lembrou de uma pequena índia degolada que apareceu em seu pesadelo na noite anterior.
Pedro não sabia o que fazer ou pensar. Tentou focar sua energia na caridade cristã e continuar o trabalho entre os moradores de Vila Velha. Mas toda noite começava e terminava da mesma forma. O frei acordava com sangue nas mãos e uma pessoa desaparecia. No começo, apenas a população Aimoré parecia ser vítima da maldição. Até a noite em que Pedro sonhou com um menino branco cujos olhos haviam sido furados. No dia seguinte, o corpo do filho de um soldado português apareceu boiando no riacho vizinho. Seus olhos vazados. A mão do Frei, suja de sangue.
Pedro passou a dormir com a porta trancada por fora. Um colega da igreja se certificava em trancar o amigo, ainda que não entendesse a razão do estranho pedido.
A primeira noite encarcerado ocorreu sem pesadelos. Mas, com o passar dos dias, o Frei passou a ter lapsos de memória. Como se sonhasse acordado. Quando voltava a si, os dedos gotejavam sangue. Uma senhora havia sido degolada em plena igreja.
O terror em torno do misterioso assassino fez com que Vila Velha se tornasse um lugar soturno. Ninguém mais saía de casa sozinho, seja de dia, seja de noite. E Pedro passou a adotar a mesma medida. Menos por auto proteção, mais para proteger o rebanho.
Com o tempo, tornou-se um eremita e instalou-se numa pequena caverna ao pé do morro, longe da Vila. Ao lado, construiu um nicho para o painel de Nossa Senhora. O povo, no entanto, viu a atitude como um sinal de humildade e abnegação e passou a se reunir , todos os dias, para rezar o rosário e ouvir o Frei pregar.
Quanto mais os fiéis o procuravam, mais ele se recolhia. Mais muros construía para isolar seus demônios e proteger os inocentes da maldição com paredes santas.
Alguns crêem que Pedro percebeu que tais pesadelos só cessavam quando ele se encontrava em solo consagrado. Talvez por essa razão o Frei tenha se tornado obcecado por colocar o maior número de paredes de pedra devidamente abençoadas entre ele e o mundo exterior.
Em 1558, o desesperado Frei concluiu o Convento da Penha e nunca mais saiu de lá. Um monumento à fé e também uma prisão para um espírito atormentado. Pedro Palácios morreu em 1570, muitos anos depois da última vez que suas mãos acordaram tintas de sangue.
Dizem que sua alma atormentada ainda pode ser vista e ouvida caminhando pelos corredores do convento, a procura de uma porta ou janela aberta. Em busca de qualquer fresta por onde possam escapar seus demônios sedentos de sangue.
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Brasil Sombrio
HorrorUma coletânea de histórias e contos sobre as assombrações mais conhecidas de cada estado brasileiro. Relatos que misturam medo e superstições com acontecimentos históricos, criando um reflexo do nosso país que é, ao mesmo tempo, fascinante e apavora...