Porto de São Francisco - Balneário de Capri (SC)

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Gostamos de afirmar que o progresso humano é esta ascensão constante, sempre motivada por sentimentos elevados, conquistando um futuro mais benevolente e justo para todos, um passo de cada vez.

A verdade, no entanto, não é tão linear.

Durante muito tempo, a medicina foi vista como uma sub-especialização do estudo do oculto. Curar significava interceder pelo paciente junto às forças sobrenaturais do universo. A saúde era uma benção divina. A doença, um castigo.

Num mundo em que a existência de seres microscópicos estava há séculos de uma comprovação, os males do corpo eram causados por espíritos naqueles que eram merecedores de tais chagas. Seja pelas próprias fraquezas de caráter, seja pelo amaldiçoar de familiares e parentes, o doente era um condenado, pagando por crimes cometidos contra as divindades.

A associação da enfermidade com o pecado era uma justificativa conveniente para as autoridades instituídas durante muitos séculos. E quanto mais nefasta a doença, maior o estigma - ou seja - maior a dívida do pecador.

Não foi por acaso que a bíblia registrou Jesus curando doenças não muito específicas. O livro sagrado menciona pacientes febris, cegueiras e, é claro, Lázaro, curado da maior mazela da condição humana: a morte.

Mas uma doença é citada em específico entre os milagres realizados por Cristo. A cura de leprosos.

Os estudiosos hoje afirmam que a lepra mencionada nos textos sagrados tinha pouco a ver com o que hoje se convencionou chamar hanseníase. Na época, qualquer tipo de doença de pele era considerada lepra.

Independente da utilização correta ou não, o termo "lepra" virou sinônimo de chaga da humanidade. Os leprosos eram vistos como párias da sociedade. A natureza contagiosa da doença obrigava os enfermos ao isolamento, o que acabava agravando o quadro da doença.

Exilados e desprovidos da própria humanidade, esses pacientes se tornavam vítimas de todo tipo de tortura e sadismo nas mãos daqueles que deveriam protegê-los.

Dom Pedro II, nosso último imperador, costuma ser retratado como um líder progressista, interessado em ciências e tecnologia. Dizem que demonstrava interesse pelas experiências de Graham Bell com o telefone, por exemplo.

No entanto, nas áreas sociais, o país patinava em retrocessos. Literalmente o último grande país a abolir a escravatura, o Brasil lidava com plebeus, escravos e dissidentes políticos com o descaso característico dos grandes monarcas.

A falta de acompanhamento médico nas senzalas tornava a vida dos escravos ainda mais perigosa. Entre a violência, a desnutrição e as doenças infecciosas, a expectativa de vida na senzala raramente ultrapassava os 40 anos.

Os fazendeiros da época não pensavam em gastar com remédios e doutores para escravos. Especialmente quando as doenças eram de difícil tratamento e contagiosas. Casos de lepra, por exemplo, eram tratados com uma só recomendação, exílio.

Em pouco tempo, um número considerável de escravos e indigentes começou a vagar pelas ruas das grandes cidades carregando a doença estigmatizada, identificada pelas marcas na pele e pela deformidade nas mãos, pés e nos rostos.

O governo precisava fazer algo. Começaram então as construções dos leprosários. O mais famoso dele era situado na cidade de São Francisco de Sul, em Santa Catarina, mais especificamente no Balneário de Capri.

Deportados do Rio de Janeiro e de outras regiões do país, os doentes eram enviados para este "sanatório". No lugar de tratamento, o local era mais uma espécie de prisão para doentes. Os poucos médicos da equipe se dedicavam a testes e experimentos pouco científicos com os internos.

O mais famoso dele, o Barão de Amorim, não tinha concluído os estudos de medicina, mas tinha influência política e dinheiro suficiente para clamar o posto de diretor do Instituto.

Suas experiências consistiam em, basicamente, cortar e costurar carne e membros de pacientes, num doentio jogo de bonecas vivas. É impossível precisar quantas pessoas morreram na ponta do serrote do Barão. De onde ninguém esperava sair, poucos corpos eram reclamados. Enquanto a doença se espalhava pelo país, Amorim se esforçava para garantir que o Leprosário do Porto sempre tivesse celas disponíveis.

Com o passar do tempo, os aliados do Barão passaram a enviar "pacientes" peculiares. Adversários políticos, líderes comunitários e outros opositores de poucos recursos começaram a ser taxados de leprosos, ainda que não exibissem sintomas.

Para o Barão, não fazia muita diferença. Em pouco tempo de exposição ao estabelecimento, os novos habitantes acabavam contraindo a doença. Senão pelo contato com os outros pacientes, pela lâmina imunda do seu serrote.

O ambiente era tão infecto que muitos dos ajudantes e enfermeiros do Barão acabaram como internos do Leprosário.

Sem garantia de que não seriam os próximos na mesa de experimentos do Barão, os funcionários foram se tornando cada vez mais escassos. Logo, não mais que meia dúzia de guardas e zeladores continuavam fieis ao Barão.

Tudo mudou numa noite de julho de 1843. Não se sabe muito bem como, mas os pacientes de Capri organizaram uma rebelião. Já muito mais numerosos que os cuidadores, bastou que um molho de chaves caísse nas mãos dos pacientes para que o jogo virasse.

Os funcionários foram todos presos em uma cela. Numa turba raivosa, os detentos avançaram em direção aos aposentos do Barão.

Tantos séculos depois, é difícil precisar o que aconteceu em seguida. Alguns afirmam que o Barão conseguiu fugir e morreu na Argentina, anos mais tarde. Outros afirmam que não teve tanta sorte.

Estes acreditam que os detentos tiveram a frieza e a presença de espírito de saborear a vingança.

A sala de operações onde Amorim realizava os experimentos tinha um formato circular e era rodeada por arquibancadas, como um auditório. A construção seguira o projeto dos grandes centros de pesquisa médica da Europa e tinha a pretensão de formar especialistas. Daquelas arquibancadas, os futuros doutores apreciariam as técnicas do Barão. Mas isso nunca chegou a acontecer. As torturas desumanas realizadas naquela sala eram exclusivas para o deleite do sádico diretor.

Ironicamente, na noite da rebelião, os leprosos lotaram as galerias para assistir um punhado de representantes amarrar o Barão na mesa de operações. A plateia aplaudia cada movimento do serrote imundo de sangue coagulado pela carne do Barão.

Um dos revoltosos era um antigo assistente de Amorim que fora infectado. Ele usou tudo o que aprendeu para fazer que a vingança durasse o máximo possível. Conteve cada hemorragia. Apertou cada torniquete. Suturou cada corte e prontamente fez com que seu ex-chefe recobrasse os sentidos depois de cada desmaio.

Antes de morrer, o Barão de Amorim era uma colcha de retalhos de carne podre e linha. Cada membro fora serrado e substituído pelos das últimas vítimas. Quando a infecção generalizada finalmente acabou com o seu sofrimento, o Barão já estava na mesa operatória há dias.

Na fuga, os pacientes incendiaram o leprosário com os funcionários prisioneiros dentro. Durante anos, ninguém ousou pisar no lugar, com medo de que as paredes ainda pudessem guardar a doença maldita.

Hoje, é possível visitar os destroços do leprosário do Capri. Mesmo durante o dia, as ruínas possuem uma energia negativa que provoca angustia e desconforto em quem passeia pelo sítio histórico. Nas noites de julho, dizem que é possível ouvir gritos distantes, saídos do nada. E o som de um serrote ecoa na madrugada. 

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