A Cidade Fantasma - Fordlândia (PA)

45 1 0
                                    

Para o bem ou para o mal, o mundo que conhecemos não seria o mesmo sem Henry Ford. Ford concebeu a primeira linha de montagem em 1913 e revolucionou os processos de produção e tornou-se referência para os métodos de produção em série. Seu automóvel de baixo custo logo tomou conta dos Estados Unidos e mudou a cultura da nação. Em pouco tempo, todas as famílias americanas sonhavam com um Ford T. E foi essa crescente demanda que levou o senhor Ford a voltar os olhos para o Brasil.

Nos primeiros anos da cultura automobilística, a borracha utilizada nos pneus dos carros se mostrou um insumo de difícil acesso. Pensando nisso, em 1920, Ford comprou algumas terras às margens do Rio Tapajós. A ideia era iniciar uma plantação de seringueiras para a produção de borracha.

Fordlândia, como foi chamada a cidade que abrigaria os trabalhadores desta plantação, foi uma das mais desenvolvidas do Norte do Brasil. Fundada em 1928, chegou a abrigar 3 mil pessoas. Tinha uma escola que ensinava inglês, um hospital com operações inéditas na região como cirurgias plásticas, um pequeno cinema com sessões de segunda à sexta e uma infraestrutura de água, eletricidade, moradia e saneamento de causar inveja ao resto do país. Não apenas pela modernidade das instalações, mas também pela qualidade do tratamento aos funcionários-moradores. Enquanto os barões da borracha exploravam a população com trabalho praticamente escravo, Fordlândia oferecia salários maiores do que o normal em fábricas norte-americanas para reforçar o vínculo com o empregado, além de estimular o consumo dos próprios produtos Ford.

Alguns biógrafos afirmam que Fordlândia não era apenas uma outra empresa para Henry. Era também sua tentativa de construir uma utopia, uma versão dos Estados Unidos dentro da selva amazônica, onde a população viveria de acordo com valores conservadores. Uma cidade industrial nos seus moldes, em que as pessoas bebessem leite de soja (ele era vegetariano), plantassem jardins, não consumissem álcool e não frequentassem prostíbulos, dançassem quadrilhas e polcas americanas tradicionais aos finais de semana e, sobretudo, sem a presença de sindicatos.

A estrutra social em Fordlândia era dividida entre americanos, responsáveis pelos processos administrativos e gerenciais, e os brasileiros, que realizavam o trabalho braçal.

As casas gratuitas, construídas no modelo arquitetônico dos EUA, conferiram ao local o apelido de "a Califórnia de Tapajós". A empresa demonstrava o que chamava de "preocupação social": todos tinham direitos sem precedentes na região. Escolas, material didático, cinema, a maior serraria da America Latina, fábrica de gelo, hortas coletivas, creches e, para completar, o mais bem equipado hospital do Pará.

Foi este clima de terra prometida que motivou Joaquim Ferreira da Silva e a esposa Ana a embarcarem em uma viagem de 18 horas pelo rio Tapajós em busca de um recomeço.

Histórias da preocupação de Ford com as condições de vida dos empregados lhe conferiram a fama de humanista e progressista. Nos Estados Unidos, por exemplo, a criação do fim de semana com dois dias de folga é atribuído a ele. Não porque Ford acreditasse que o trabalhador merecesse descanso. Mas porque percebeu que era necessário conferir um dia para que a classe operária pudesse comprar os produtos que consumia, aumentando as vendas das próprias empresas. Como o domingo já era o dia da folga para a igreja, ele adotou o sábado como o dia reservado para o consumo.

E Ford também era famoso pela intransigência. Inovador a respeito das próprias ideias, era resistente ao parecer dos outros e críticas. Henry Ford detestava especialistas e defendia o método empírico de erro e acerto que ele próprio havia desenvolvido ao construir seu primeiro automóvel. Por isso, recusou-se a contratar especialistas em botânica para auxiliar no trabalho de seleção e plantio das seringueiras.

Como não havia um único botânico ou agrônomo na equipe, os tecnocratas Americanos simplesmente dividiram a área da plantação pelo número de seringueiras, como fariam com máquinas em uma linha de produção. O resultado da proximidade das árvores foi uma praga devastadora após a outra. O conhecimento de botânica era tão limitado que um dos diretores, ao ler uma sátira em um jornal dizendo que haviam adquirido apenas sementes de seringueiras fêmeas, mandou uma carta para a matriz perguntando se aquilo era verdade.

Mas não foi apenas o desconhecimento da botânica que passou a ameaçar a utopia de Fordlândia. As barreiras culturais começaram a ameaçar o projeto do empreendedor americano.

Acostumados com um sistema de endividamento - em que gastavam mais do que ganhavam dos barões da borracha locais, os extrativistas sumiam assim que recebiam o primeiro salário. Eles voltavam para suas famílias, em algum lugar onde podiam plantar e subsistir da pesca e agricultura, sem ajuda de salário, pois muitos bens eram adquiridos por permuta. Ford não compreendia que o dinheiro na floresta não valia o mesmo que em Michigan.

E, mesmo entre aqueles que escolhiam permanecer na cidade, como Joaquim e Ana, a intromissão dos americanos nas vidas privadas passou a ser insustentável.

Os gerentes gringos determinavam o que os empregados deveriam comer e o que fazer nas horas de folga. Ford tentou inclusive estabelecer a lei seca em Fordlândia - que vigorava na época nos Estados Unidos, mas não no Brasil - , indo contra a legislação local. Mas os trabalhadores burlavam as leis frequentando bares e prostíbulos flutuantes, do outro lado do rio.

Além disso, a malária e outras doenças tropicais lotavam o hospital da cidade, cujos médicos tinham pouca familiaridade com as patologias locais. Aos poucos, Fordlândia deixava de ser um paraíso na floresta para se transformar num barril de pólvora.

Em 1923, depois de uma jornada de quase 18 horas de trabalho, Joaquim retornou para sua casa californiana, apenas para encontrar a esposa morta na cama. Ana contraiu febre amarela e jamais conseguiu um leito no hospital lotado. Pressionado pelo rigoroso sistema de cumprimento de horas de trabalho, Joaquim teve que deixá-la sozinha para bater ponto no seringal. Ana morreu sozinha em uma cama de sonho americano.

Tomado por dor e revolta, Joaquim dirigiu-se ao refeitório empunhando seu facão. Lá, encontrou outros companheiros e iniciou a insurreição seringueira em Fordlândia.

Para o horror dos gerentes americanos, os seringueiros passaram a depredar tudo o que viam pela frente. Com um facão, Joaquim destruiu o relógio de ponto que simbolizava a opressão de Ford aos trabalhadores brasileiros. Em pouco tempo, o refeitório ardia em chamas. E então os revoltosos focaram sua atenção nos gringos.

Os que não foram queimados vivos foram obrigados a fugir para a floresta. Há relatos de sobreviventes que precisaram se esconder por até três dias em meio à mata até a chegada do exército brasileiro. Destes, alguns foram devorados por animais selvagens. Joaquim e os revoltosos foram massacrados pelas forças armadas. Não há registro do que foi feito de seu corpo, ou do corpo de Ana. Acredita-se que há uma vala comum no cemitério da cidade destinada às vítimas do confronto. No entanto, a selva já retomou o local, hoje abandonado.

No final da Segunda Guerra Mundial, o neto de Ford, Henry Ford II, assumiu os negócios da família e vendeu para o governo brasileiro as terras adquiridas pelo avô, que morreu sem nunca por os pés na Amazônia. Desde a década de 80 o governo federal abandonou o local, que se transformou em uma cidade fantasma. Literalmente, de acordo com alguns moradores das margens do Tapajós.

Os corajosos dispostos a visitar as ruínas de Fordlândia precisam enfrentar a longa viagem de barco e ter coração forte. Dizem que, durante a noite, a sinfonia da floresta subitamente se cala nos arredores dos destroços da cidade abandonada. No lugar dos grilos e das aves noturnas, o silêncio. E, subitamente, a floresta passa a ecoar gritos desesperados num idioma que se assemelha ao inglês norte-americano. 

Brasil SombrioOnde histórias criam vida. Descubra agora