Antigas construções ao redor do mundo carregam as marcas da história por dentro e por fora. As atrocidades de reis e rainhas, sacerdotes e freiras acabam impregnando as paredes que as testemunharam com uma energia, uma força que permanece pelos aposentos e corredores do local, muitos séculos depois dos ocupantes deixarem este plano.
Alguns chamam essa energia de poltergeists. Há quem acredite que esta herança espiritual seja assustadora, mas inofensiva. Mas, há casos em que os vestígios de uma tragédia se transformam em um residente das sombras, pronto a atacar aqueles que ignoram tal presença.
A cidade de Buriti dos Lopes, há 300 km de Teresina, é o típico município do interior do Piauí. Seus cerca de 20 mil habitantes levam uma vida tranquila, sem grandes agitações. O povo religioso frequenta a igreja e socializa na praça central nos fins de semana. A típica vida pacata que é o sonho de muitos moradores da cidade grande, sufocados em engarrafamentos, poluição e violência.
Depois do sol se por, os cidadãos de Buriti retornam para casa, e há uma rua em que poucos se aventuram durante a noite.
Na rua Tiradentes mora uma mulher que sonha com o dia em que poderá deixar a cidade. Dona Luciana, nome fictício, gostaria de poder se mudar. Quem sabe até sair para ir à igreja. Mas não pode. A casa não permite.
Os vizinhos recontam acontecimentos inexplicáveis na casa de dona Luciana. Barulhos de copos se quebrando. Talheres e louças que amanhecem estilhaçados no meio da rua. Gritos. Idosa, dona Luciana não sai mais de casa, nem recebe visitas. Suas compras e pagamento de contas são feitas por amigos e parentes, que se limitam a deixar os mantimentos na porta e sair de lá o quanto antes.
Aqueles que se aventuram a ficar mais tempo e tentam fazer companhia à Luciana acabam... machucados.
Objetos voam das estantes e se espatifam aos pés ou pior, contra os corpos dos invasores. Já aconteceu de copos serem simplesmente arremessados por uma força invisível. Um dos entregadores de encomendas desistiu de atendê-la. Um carteiro mais solícito precisou levar pontos no supercílio quando um porta-retrato atravessou a sala e acertou-lhe o rosto.
Hoje, Dona Luciana não anda mais. Dizem que um vizinho foi acordado pelos gritos vindos da casa na Rua Tiradentes. Assustado, chamou a polícia. Os oficiais encontraram a mulher debaixo de uma montanha de móveis. Um armário, o sofá e até mesmo o fogão de quatro bocas estavam sobre ela, no meio da sala. Já naquela época, Luciana morava sozinha e jamais conseguiu explicar como aquilo aconteceu. Limitou-se a dizer que tinha acabado de fazer as malas e preparava-se para deixar a cidade para sempre.
Dona Luciana não chegou a ser hospitalizada e recusou-se a aceitar ajuda para tratar os ferimentos do estranho acidente. Jamais voltou a caminhar. Uma rifa correu a cidade e lhe proporcionou uma cadeira de rodas. Hoje, passa a maior parte do dia olhando pela janela, vendo a vida passar pela Rua Tiradentes.
Entre os moradores da cidade, o boato é que, antes mesmo dos acontecimentos assombrosos, Dona Luciana nunca fora feliz naquele endereço. O marido, Agildo, construíra a casa com as próprias mãos quando ainda namoravam. O plano era casar com Luciana e ali constituir família.
Alguns parentes confessam que Luciana nunca fez o tipo caseira. O casamento era apenas uma rota de fuga da casa da mãe, onde o padrasto abusivo lhe infernizava a existência. Agildo não era o amor de sua vida, mas alguém que podia resgatá-la.
No começo, tudo parecia perfeito. A casa, ainda em finalização, parecia ter o potencial para abrigar um lar feliz. Mas Luciana tinha sede de mundo, e Agildo não era capaz de saciá-la.
Perdidamente apaixonado, o pedreiro fez tudo o que pôde para ver a esposa feliz, mas o desprezo de Luciana só aumentava e Agildo se ressentia. Um dia, chegou em casa e encontrou as malas da mulher prontas e passagem de ônibus comprada. Luciana tinha raspado a poupança do casal num projeto de fuga.
Naquele momento, algo se quebrou dentro de Agildo. Num ataque de fúria, rasgou a passagem e espancou a mulher. Sangrando no chão, Luciana sentiu Agildo puxar-lhe os cabelos e sussurrar no ouvido que ela só sairia daquela casa sobre o cadáver do marido.
Luciana aceitou o desafio.
Nos dias que se passaram, a relação do casal reencontrou a paz, na medida em que os ferimentos de Luciana cicatrizavam.
E no aniversário de casamento, Luciana serviu ao esposo seu bolo favorito com uma surpresa. Veneno de rato suficiente para matar um cavalo.
Enquanto lutava conta a paralisia que lhe dominava o corpo, Agildo olhou no fundo dos olhos de Luciana, que sorria diante do seu sofrimento.
O pedreiro balbuciou alguma coisa que a esposa não entendeu.
Há os que digam que somente depois de cumprir o papel de viúva abalada pela morte súbita do marido que a assassina compreendeu a mensagem deixada no leito de morte.
Agildo jurou, antes de morrer, que Luciana jamais deixaria a casa que construíra para ela. Pelo menos não com vida.
Hoje, quem passa de noite pela casa da rua Tiradentes, o faz com passos rápidos e cabeça baixa. Nunca se sabe quando um objeto voador vai cruzar a rua e atingir os pedestres.
Também nunca se sabe quando Luciana estará olhando pela janela, implorando por ajuda para fugir de sua prisão sombria. Um olhar de loucura, remorso e desespero que dói no fundo da alma daqueles que o testemunham.
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Brasil Sombrio
HorrorUma coletânea de histórias e contos sobre as assombrações mais conhecidas de cada estado brasileiro. Relatos que misturam medo e superstições com acontecimentos históricos, criando um reflexo do nosso país que é, ao mesmo tempo, fascinante e apavora...