Capítulo I

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Duas semanas depois...


Quinta-feira, 04 de setembro de 2014

Manhã, 06h31

Amenos eram os ventos do início de outono, que afagavam os cabelos tom de ébano da detetive. Gotas de uma garoa quase invisível ao olhar formavam teias brilhantes sobre os fios, os quais se moviam conforme o caminhar firme, os pés cobertos por sapatos de plataforma, as pernas justas numa saia de seda tão escura quanto a bolsa em seu braço, destacando o contorno de seu busto numa camisa branca que, caso ela não se cobrisse, viria a se tornar transparente.

Harley Cleanwater mantinha os olhos fixos nas casas à sua frente, que observavam os homens com olhos taciturnos, julgando-os com suas luzes amareladas assim que a noite dominava os céus. Ela não podia negar que a vista era muito similar à de Castle Combe, a cidade de onde vinha. Eram quase as mesmas construções, mas eram feitas com suas pedras tom de mel, um tipo de calcário que os deixou famosos, com famílias tão antigas quanto elas, flores e mais flores em vasos de barro decorando as entradas e os vastos campos eram tão amplos e retilíneos que a visão parecia se tornar infinita se não fosse por uma única construção que se elevava acima de todas.

A mulher teve certeza de que era para lá que deveria seguir.

Mantendo um cigarro entre os dedos e, em curtas momentos, o levando até os lábios, sentindo a fumaça preenchendo seus pulmões, ela considerou se toda aquela viagem iria valer a pena. As mulheres da pequena e fria Painswick encaravam Harley, julgando-a com seus olhos exageradamente redondos, a pele com as rugas sempre ressecadas. Se era para ser julgada, não precisava ter saído de sua cidade.

Quem é essa prostituta? Harley podia praticamente ouvi-las perguntando isso com a voz carregada de conservadorismo e, talvez, um tanto de aversão ao diferente. Painswick é uma cidade de Stroud de pouco mais de três mil habitantes que faz parte do condado de Gloucestershire. Não se poderia esperar muito e tudo isso pouco importava à mulher; apenas o seu trabalho era importante naquele momento. Sim. Se focasse naquilo, sua mente se distrairia das provocações costumeiras.

Não que Harley estivesse ansiosa para o seu trabalho, longe disso, mas a ideia de conseguir dinheiro a alegrava. Precisava manter seu escritório em Castle Combe, então aquele caso poderia ser de grande proveito.

Antes de ir para lá, ela se preparou psicologicamente, afinal não é todos os dias que se trabalha com um caso de um menino de doze anos desaparecido e um menino ainda mais novo - de dez anos - morto. Harley já podia imaginar todas aquelas mulheres chorando, seus lenços caros sendo usados para enxugar falsas lágrimas de consentimento que para nada serviam se não para piorar o estado de uma mãe que perdera sua criança.

Passando pela Saint Mary's Street, Harley cobriu-se com seus próprios braços, abraçando as laterais do corpo. Já era possível observar o frondoso jardim da Painswick Church, uma construção antiga, baseada num estilo de rococó gótico no qual Harley pode imaginar claramente demônios sobrevoando a pequena cruz que havia no topo da torre. Quando procurara por mais informações de onde iria se meter, Harley descobriu que o jardim daquela igreja fora projetado minuciosamente, com suas noventa e nove árvores arredondadas, uma intervenção do homem, talvez. Não. Talvez a terra fosse tão sagrada naquele local que as árvores cresceram daquela forma, ironizou ela em pensamento.

A área era contornada por um baixo muro de tijolos, o que não facilitou a vida dela, fazendo-a dar uma volta completa para chegar à entrada, onde um abarrotado de mulheres se reunia, fervorosas e, previsivelmente, com lágrimas nos olhos. Talvez fosse a frieza expressa na pele pálida da mulher que fizera todo o grupo encará-la. Ou talvez fosse apenas seu par de óculos de sol em meio à palidez do céu. Ela respirou fundo e os retirou, seus grandes olhos castanho-chocolate observando uma das mulheres, gorda, com um chapéu inconveniente para o momento. A mulher usava um longo vestido amarelado e cheio de flores: seus olhos repousaram sobre o cigarro dela.

Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora