Capítulo V

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Sábado, 06 de setembro de 2014

Manhã, 06h37

Harley acordou com um ruído e levantou o lençol do rosto, alguns fios de seu cabelo emaranhando-se como vinhas diante dos olhos ainda embaçados pelo sono. O som se repetiu com mais força e certamente não era mais um ruído, mas sim notas que escapavam de um órgão um tanto desafinado. Ela girou sobre a cama e as molas rangeram, como se alertando-a no mesmo instante de que seu sono não voltaria nem que ela apertasse os olhos até ver estrelas. Mas o sono não voltou nem mesmo ao fechar os olhos. Em vez disso, fragmentos do sonho retornaram.

A mulher reabriu os olhos e viu, com a luz do dia que entrava pela pequena janela acima de sua cabeça, as vigas no teto e a cera da vela já apagada. Lentamente, ela se endireitou, tomando cuidado para que a cabeça não girasse. Depois, calçou os sapatos e certificou-se de que Eldric Heartland ainda dormia.

De duas opções uma: ou ela era silenciosa demais — o que muitos achariam questionável — ou ele tinha um sono pesado demais, porque seu corpo estava inerte, a boca babando na fronha do travesseiro e o peito largo exposto no suor grudado no tecido.

Realmente, aquela manhã estava mais abafada, mesmo com a chuva torrencial de ontem, o que era estranho, considerando que deveria ocorrer o oposto. Porém Harley não questionou. Painswick era uma cidade estranha, mas quem era a mulher para julgar?

Quando atravessou a porta do pequeno quarto, deparou-se com o corredor com o qual foram guiados na noite passada e se surpreendeu com o quão ele era mais largo do que esperava, com fotografias penduradas na parede à direita e um balcão enorme à esquerda, o qual permitia uma vista privilegiada da missa que o Pare Lewis ministrava. Ele estava em pé no púlpito, com seus trajes impecáveis e cantando um hino à medida que a irmã Minerva dedilhava o órgão ao seu lado.

Havia mais Irmãs, também, sentadas no primeiro banco, na mesma direção de uma fileira de crianças animadas demais, sacudindo as pernas e sorrindo, murmurando travessuras até serem censuradas por uma das freiras que estava sentada na ponta.

Talvez, se a família de Harley tivesse demonstrado o mero interesse por qualquer religião, a mulher pudesse entender o que fazia alguém levantar às seis e meia da manhã para ouvir um velho falando palavras de um livro escrito por homens.

Mas cada um tinha sua fé e, embora a detetive achasse tudo uma perda de tempo, ela ainda respeitava aqueles que pensavam o contrário.

Então, quando a música já chegava ao fim, ela olhou por sobre o ombro, fitando o homem que ainda dormia e ressonava. Eles haviam combinado de trabalharem juntos, porém algo no modo como ele agira na noite passada, no breve interrogatório, a fez decidir por prosseguir sozinha, naquele instante, conforme os pés se encaminhavam na direção do escritório do padre, os olhos variando entre as fotografias e as poucas pessoas lá embaixo.

Eram todas variações de um mesmo tipo de foto: um conjunto de freiras separadas em duas fileiras, a primeira sentada e a segunda em pé, as mais altas no fundo, obviamente, e o Padre Lewis no meio delas, com um sorriso afável como se visto em um desenho animado.

Bom, ao menos a partir de 2008, porque antes disso havia um velho carrancudo e amargo entre as senhoras, de olhos profundos e nariz de tucano, que parecia afastar qualquer pessoa da congregação.

Talvez realmente seja por isso que gostem tanto do novo padre...

Mas o que realmente fez Harley sorrir foi o fato de ter visto o rosto da Irmã Minerva desde uma fotografia em 2005, podendo acompanhar seu definhar a cada registro conforme os anos e os cabelos duros como palha apenas cresciam, ultrapassando a altura dos seios caídos.

Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora