Capítulo XXI

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Segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Manhã, 05h58

Harley Cleanwater jamais teria acordado tão cedo se não tivesse dormido na rua, agarrada às suas duas malas, que lhe foram entregues na recepção do hotel, onde ela tentou se hospedar novamente, porém, assim que lhe mostraram o valor da diária, ela soube que não poderia considerar aquela opção, e entendeu ainda mais o desejo ganancioso de Paul Dickens com Elena.

Agora, os cabelos estavam amassados e a coluna doía conforme erguia-se do banco de cimento de frente a caixa de areia onde Lucas Yard foi encontrado morto.

Surpreendentemente, ela não teve pesadelos. Na verdade, lembrava-se apenas de um vazio escuro, sem pensamentos, sem obstinações, sem mortes. Apenas... o nada. É inegavelmente verdade que uma investigação pode acabar se tornando pessoa e os desejos de um detetive acabam se alinhando por demais com os de seu cliente, mesmo que isso seja possivelmente antiético, porém, naquele misero instante, conforme o sol tingia o azulado da noite em tons mais claros e era seguido por nuvens granuladas, Harley não tinha mais desejo algum.

Seu corpo a desligou do caso por alguns instantes, nos quais ela, por mais que encarasse diretamente a caixa de areia, não via nada, como se seus olhos estivessem doentes.

Harley desejou que estivessem, porque, dentro de si, sabia que aquela seria a única noite em que não teria pesadelos.

...

A mulher fez-se caminhar até a delegacia com duas malas na mão direita e um copo de isopor com vodca na esquerda, os olhos cobertos por seu par de óculos de sol, ainda que esse último elemento estivesse discreto demais para requisitar aquele par. Ainda assim, era melhor que perguntassem do motivo dela os estar usando do que sobre suas olheiras, tão profundas que ela podia jurar que as sentia pesando sobre os ossos.

Talvez por isso ela tenha demorado um pouco mais para subir os degraus da delegacia, as pernas parecendo carregar grilhões até que os braços tentaram empurrar a porta de vidro e detiveram-se com um empurrão.

Estranho.

Ela tentou novamente e, como se houvesse ali um campo de força, seu corpo repeliu-se para trás.

— Mil desculpas! — Uma voz fina que a detetive ainda não havia ouvido a recebeu por detrás, vinda de uma mulher de rosto doce, muito vermelho devido a rosáceas, cabelo curto, repicado nas pontas e dentes tão grandes que saltavam da boca, mesmo que fechada. Em seu crachá prateado lia-se: Gwen Dorris. — Eu sei que já devia ter aberto as portas, mas me perdi pelo caminho...

Harley franziu o cenho.

— E você é...?

— Gwen. Gwen Do...

— Quis dizer o que está fazendo aqui — interrompeu-a no mesmo momento. — Seu crachá tem seu nome por um motivo, eu sei ler.

Mas, apesar da grosseria, Gwen continuou a sorrir, nervosa, as bochechas parecendo aumentar o tom cada vez mais, como se fossem explodir em certo momento.

— Ah, sim, sim, é claro... eu sou nova por aqui, fui designada para essa delegacia.

Harley umedeceu os lábios e largou suas malas sobre a entrada.

— Nova?

— Sim! Nos foi informado que havia uma necessidade de reforçamento na polícia de Painswick, então me designaram — explicou alegre. Alegre demais.

— E todos os policiais novatos costumas ser tão falantes quanto você?

Gwen não soube como responder, de tal forma que gaguejou por alguns segundo, mas nenhuma palavra saiu.

Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora