Capítulo VI

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Domingo, 07 de setembro de 2014

Manhã, 11h29

A manhã apática e sem vida de domingo chegou com um chuvisco fraco e quase invisível aos olhos, como os resquícios ínfimos da tempestade dos dias anteriores, que deixou suas marcas de outras maneiras; sacos de lixo no meio da rua sendo retirados por seus donos mal humorados e galhos de árvores não eram incomuns naquele dia, e a gelidez da garoa era mais do que notável ao contado da pele de Harley, que mantinha a cabeça baixa, protegendo seus olhos dos chuviscos certeiros enquanto caminhava, as pernas enfiadas em uma calça de sarja preta e os seios cobertos por uma camisa azul-marinho.

Não estava ansiosa para o encontro que estava prestes a fazer, mas, como detetive, fazia parte de sua função saber que a maioria de suas tarefas eram desagradáveis. As pessoas mentem porque querem esconder seus lados sujos. Seus segredos. Seus monstros. Ou, se preferisse usar o dialeto exacerbadamente sacro daquele lugar, seus pecados. E assumir a tarefa de trazer toda essa escuridão para a luz te atola de merda e lama até o pescoço, de tal forma que é difícil não se contaminar com a ruindade de todos.

A escuridão parece adentrar a pele devagar, como um câncer sorrateiro que alcança seus ossos.

No final, tudo é feio. Tudo é hediondo. Tudo mente.

E é por isso que a detetive Cleanwater não conseguia se dar por vencida com aquela imagem perfeita de Elena Hargroove, por mais que ela fosse sua cliente. Tudo que é muito perfeito, no final, é o mais assustador, porque a perfeição não é natural; ela foi criada pelo homem, e tudo que o homem cria eventualmente se volta contra ele.

Como um marido que atira a esposa, mesmo que eles tenham criado seu laço em matrimonio.

Como uma arma de fogo, criada para proteção, porém tirou mais vidas do que salvou em uma guerra.

Também como uma mãe, que desaparece com o próprio filho e contrata uma detetive para ver se há pontas soltas que a entregariam.

— Caralho, Harley... — sibilou para si mesma olhando de um lado para o outro, certificando-se de que ninguém tinha ouvido aquele pensamento, por mais que isso fosse algo tosco. — Sua mente é fodida demais...

Mas era verdade. Aquela teoria era uma das possibilidades e a detetive não a descartaria, por mais que isso fizesse um tijolo esmagar suas entranhas conforme dava duas batidas na porta da casa de Mary Yard.

Demorou alguns segundos até que a sombra desforme, ainda que rechonchuda, da mulher aparecesse através da janela cravada na porta, um leve ranger acompanhando o abrir da passagem apenas para revelar as feições abatidas da mulher, os cabelos castanho-dourados amarrados para trás em um rabo de cavalo.

— O que você quer, Cleanwater? — indagou a mulher atarracada ao ver a detetive em, os cabelos cor de ébano melhor penteados que os dela. — Já mandei você ir embora uma vez...

A voz escapava fraca, porém a dor que Harley vira na primeira visita que fizera não estava mais ali. Ao menos não na forma verbal, porque a detetive sabia que uma mãe jamais superaria a perda de um filho. Não de verdade, e isso não importava o tamanho da fé que tivesse.

A detetive pegou-se pensando de maneira fugaz se Lena ou Jim Cleanwater sentiriam falta dela se a mulher tivesse desaparecido quando menor. Mas ela não precisou pensar muito para aquela resposta... seus pais sempre foram uma exceção a qualquer verdade universalmente conhecida.

— Me lembro bem.

— Então a que veio? — Mary cruzou os braços, apática, olheiras profundas em sua pele.

Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora