I - CHUVA

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É estranho, a sensação de que está chovendo lá fora e aqui dentro de mim também. Não, não é tão poético assim... Na verdade é bem doloroso.

Às vezes sinto como se tivesse águas rolando dentro de mim, assim como a chuva lá fora. Sinto uma imensidão nada constante, mas que oscila entre uma velocidade frenética e uma falsa calmaria.

Falando em falsidade, eu me sinto a mais falsa de todas. Não por fingir ser alguém que não sou. Mas por simplesmente não fazer ideia de quem mora em mim. Às vezes penso que sou a soma de tudo que já vivi, ou a soma de todas que um dia eu tentei ser. Mas quem sabe...

Talvez esse seja o exato caminho para a minha descoberta, ou para a minha total perdição.

- Aiko! Aiko! Acooooooorda, garota! Todo dia essa mesma coisa! Quando você vai começar a acordar sozinha, hein? E quando eu não estiver mais aqui?

- Arg!-
Fecho a janela, e voilà! Mais um dia na tediosa vida de uma garota. Me pergunto o que poderia piorar, a chuva: minha mãe gritando, meu irmão chorando no outro quarto, ou eu mesma?

É o meu primeiro dia no segundo ano do ensino médio. Eu só queria arranjar um jeito de não ir para a escola, só hoje... Só hoje.

Olho no espelho, um corpo magro, desajeitado, e pálido. Talvez eu esteja doente.

Acho que a única coisa legal em mim é o meu nome. O meu avô era japonês e me deu o nome de Aiko, que significa "Filha amada". Acho que esse amor ficou só no nome mesmo. Ou talvez eu era realmente amada, quando ele estava vivo.

O uniforme da escola é absurdamente ridículo! Um vermelho berrante, a manga da blusa parece que cabe outra pessoa. Minha mochila amarela com chaveiro do Yoda, tênis preto, cabelo preso. Tudo certo. Vamos lá!

Vai dar certo garota. mais dois anos e isso acaba. Eu prometo.

Pego dois ônibus para chegar na escola. Estudo aqui desde o ano passado, é uma escola do estado. Três dias na semana eu passo o dia inteiro, e nos dois que não passo eu participo de alguns grupos extracurriculares. Um desses grupos é o de Astrologia e Ciências, e o outro é de Arte Contemporânea.

Hoje não vou passar o dia, porque é o primeiro dia de aula. Vai ter uma palestra chata, apresentação dos professores e conhecimento da turma. Aff!

- Oi, Aikooooooô! Que saudadeeee! Tanto tempo que não pego ônibus!

- Oi, Amanda! Como você tá? Como foram as férias?

Amanda é minha amiga. Ela é daquelas amigas da escola que você conversa coisas superficiais, esbarra nos corredores e no ônibus, mas não passa disso.

- Meninaaaa, eu aproveitei essas férias, conheci um garoto incrível! Pena que foi na cidade do meu pai, e por lá mesmo o nosso romance a curto prazo ficou. E você? Como está sua mãe? Fiquei sabendo do diagnóstico... Sinto muito, Aiko... Como o Lucas está com isso? E quem está cuidando de tudo?

- Ah, isso... Minha avó vem alguns dias da semana dar uma força. Estamos fazendo o melhor que podemos. Lucas vai começar na escolinha esse ano, o que vai ajudar muito a gente. Minha mãe é forte, vai conseguir...

Graças a Deus chegamos na parada do segundo ônibus! E mais dez minutos pra escola...

Corredores cheios, alunos novatos perdidos, professores novos, colegas perguntando da minha mãe, professores velhos...

Cheguei em casa 17:30. Geralmente chego 19:00, mas como hoje foi o primeiro dia, cheguei cedo.

- Aiko, tem sopa no fogão. É de cenoura, filha.

Eu amo quando a vovó Margarida vem nos ajudar. Ela sempre faz comida vegetariana, ela sabe que faz três anos que deixei de comer carne.

Minha mãe também passou a consumir menos carne porque a maioria das vezes que come ela vomita, e quando come é pouquinho, salada ou sopa. Ano passado ela foi diagnosticada com câncer no estômago.

Minha vó está quase morando com a gente de tanto nos ajudar. O meu irmão só tem três anos, e eu sou uma adolescente. Às vezes me sinto inútil porque queria ajudar mais, trabalhar ou ganhar dinheiro de alguma forma. Mas é difícil arrumar um trabalho que seja dois dias, eu estudo integralmente três dias, o que torna tudo meio impossível.

Com o seguro do trabalho que minha mãe recebe e o salário da vovó conseguimos segurar as pontas aqui. Compramos o básico, basicamente só comida. Dificilmente entra alguma coisa além disso através do nosso dinheiro. A última vez que tive algo novo foi em julho no meu aniversário de 16 anos, foram alguns livros de Star Wars que eu não tinha na minha coleção.

Nossa casa é grande, ganhamos ela de herança da mãe do Marcelo, o meu pai. O Lucas dorme com a mamãe no quarto maior. Eu durmo sozinha no último quarto e vovó Margarida dorme no quarto do meio. O meu quarto, assim como tudo da casa, é bem antigo e de madeira, o piso escuro.

Tenho alguns planetas colados na parede: Júpiter, Marte e Urano, que são os meus favoritos. Meu telescópio velho fica do lado da janela, e minha cama grande. Tem um tapete enorme e um armário de roupas, uma pilha imensa de livros que não cabem mais na prateleira, e é isso...

Ah! A minha parte favorita! Tem um banquinho de madeira verde com a minha vitrola. Quase todos os dias eu ouço alguns clássicos que ganhei do meu avô. Ultimamente eu não tenho ouvido muito porque tenho sentido falta dele. Às vezes a saudade me deixa pior.

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