parte III

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Levantei relutantemente, olhei pela janela e vi a chuva cair de modo que me hipnotizava. As árvores balançavam como se estivessem dançando e eu sorria com aquilo. Essa era a melhor hora do dia, eu acordava e olhava pela pequena janela, apreciava o céu, as folhas e cada toque que a natureza proporcionava. Infelizmente toda essa alegria acabava quando me dava conta do que estava por vir. Já estava acostumada com o seu rosto mas ainda não me sentia confortável, nada daquilo era normal.
Fui ao banheiro e comecei a pentear meus cabelos enquanto me olhava no espelho. Analisava cada característica do meu rosto. Tentava dizer a mim mesmo que aquilo no espelho era eu, por algum motivo eu entro em negação toda vez que vejo meu reflexo. Não parece ser a pessoa que eu conhecia. Na verdade não era, depois de vir para cá me tornei fraca, cada dia menos motivada. O ambiente tóxico colaborava com a percepção que tinha sobre mim mesma. Cada pensamento que vinha a minha cabeça quando o assunto era eu, eram negativos e muitas vezes deprimentes. O espelho não era meu amigo.
Gostava de pentear meus cabelos, os fios ainda eram fortes. A cor exageradamente preta dominava qualquer ambiente. Sempre foi muito brilhoso o que me deixava feliz, nunca precisei me esforçar para cuidar dele. Minha vista acabou cansando, olhar por muita tempo meu rosto nunca foi uma boa ideia mas as vezes precisava me desafiar.
O relógio continuava funcionando, escuto o seu tic tac me avisando que os primeiros deveres do dia começariam na cozinha.
A rotina era sempre a mesma mas com a chegada do menino agora seria tudo diferente. Ou pelo menos era o que eu desejava. Fiz o café da manhã e arrumei a mesa, fiquei o esperando com o mesmo sorriso amarelado e forçado de todas as manhãs. Apenas o ouvia mastigando com pressa enquanto estava parada no canto da parede esperando ele sair, e assim o fez, saiu como sempre, no mesmo horário cravado no pequeno relógio de pulso que tinha na cozinha. Preparei a bandeja e fui ansiosa para o porão.
Aquele menino era minha chance de ter alguém para me distrair. Não aguentava mais estar presa aos mesmo pensamentos dia após dia.
Percebi que ele estava acordando antes mesmo de chegar perto, não sabia se eu que o havia acordado com o barulho do assoalho mas continuei caminhando enquanto o encarava.
    ⁃    Bom dia.
    ⁃    Bom dia eu acho - ele diz meio confuso
    ⁃    Trouxe seu café da manhã
    ⁃    ah, obrigada - sua voz parecia cansada
O observei devorar a panqueca enquanto pensava em um assunto que não fosse nos constranger e que milagrosamente nos aproximasse. Eu precisava disso.
Acabo perdendo a concentração quando ouço sua voz.
    ⁃    Ele te machucou muito?
    ⁃    An.. o que?
    ⁃    Eu ouvi ele te batendo ontem, machucou muito?
    ⁃    na verdade não
    ⁃    como você aguenta?
Seus olhos pousam sobre os meus e vejo que ganhei minha própria aposta. Tinha os olhos azuis como o oceano.
    ⁃    Já estou acostumada - pensando bem era normal esse tipo de situação.
    ⁃    Você não respondeu a minha pergunta de ontem - falava enquanto olhava profundamente em meus olhos.
    ⁃    Estou aqui a bastante tempo.
    ⁃    Quanto tempo exatamente? - ele parecia curioso
    ⁃    não sei, alguns anos.
    ⁃    Por quanto tempo você acha que ficaremos aqui ainda?
    ⁃    Não faço ideia, mas pode relaxar que ele não vai te matar - pelo menos era o que eu pensava
    ⁃    Como voce tem tanta certeza? - ele sente minha desconfiança nas palavras
    ⁃    Não tenho, mas tudo faz parte do processo dele.
    ⁃    afinal o que é esse processo?
    ⁃    Eu também não sei direito, quando foi comigo eu não fazia ideia do que se tratava mas com o tempo vai amenizando.
    ⁃    amenizando o que? a dor?
    ⁃    depende do que ele decidir fazer com a gente.
    ⁃    Esse cara é doente.
Ficamos calados. O silêncio reinava sobre o lugar. Queria poder responder todas as suas dúvidas mas eu também tenho as minhas e nunca encontrei resposta alguma.
    ⁃    Uma vez quando ele chegou para jantar, tirou o casaco e colocou na cadeira, comeu e deixou o casaco ali. Na hora não dei importância mas quando ajeitei a cadeira um cartão caiu do bolso dele. Não tinha nome nem telefone mas estava escrito "Psiquiatra". Eu não sei se era dele ou ele estava atrás de um mas com todas essas maluquices que ele faz, talvez seja isso.
    ⁃    Pode ser que ele seja. Mas quem precisava de psiquiatra é ele, e um qualificado. - ele diz animado.
Começamos a rir e mesmo que o motivo não fosse tão engraçado, pelo menos para mim era satisfatório. A muito tempo não ria, era como se essa palavra não existisse no meu vocabulário.
Continuamos mais algum tempo conversando, comentando sobre coisas sem sentido e engraçadas apenas para deixar o tempo passar. Voltei a cozinha depois de algum tempo para terminar minhas tarefas, preparei o almoço e voltei ao porão, era divertido ficar ao seu lado, ele era engraçado. Eu me sentia necessária. Mesmo que ver ele preso a correntes não fosse o ideal, não poderia fazer nada a respeito.
O dia foi escurecendo e precisei retornar ao meu quarto. Mal via a hora de voltar e poder jogar conversa fora mais um pouco. Por mais que tivéssemos conversado por algumas horas eu ainda não sabia seu nome e não fazia ideia do porque ele tinha escolhido esse menino.

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