parte V

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Não acredito que estou aqui de novo, depois de tudo o que eu fiz por ele. Esse não era o nosso combinado, eu fiquei aquele tempo mas poderia sair se fizesse o que ele mandasse e ficasse a prontidão em relação a comida e higiene. Eu odeio ele mais do que qualquer coisa. Quanto mais eu penso no que eu passei mais a raiva me consome. Não pensava em nada e nem em ninguém, só em um jeito de dar fim aquele horror.
Mas eu precisava me acalmar, meu corpo estava quente e conseguia ver meu reflexo contorcido de raiva e angústia.
O menino estava apavorado também, fui um pouco grosseira reconheço, mas preciso ficar um pouco sozinha. Pelo menos por enquanto.
Os minutos foram passando e meu corpo foi relaxando, pensei em tudo de bom que já me aconteceu, lembrei das melhores coisas da vida real que tive antes disso e meus sinais vitais pareciam estar normalizados.
Levantei e sentei ao lado dele.
- Me desculpa - falo com a cabeça baixa.
- Por que? - ele diz confuso
- Me desculpa por ser grossa daquele jeito, eu só estava de cabeça quente.
- Ei está tudo bem, eu entendo que você passou por muita coisa okay? Não fica assim.
- Eu sei, mas não justifica, você sempre foi muito amável comigo, não merece ser desrespeitado dessa maneira.
- Vamos esquecer isso, agora precisamos nos concentrar em como vamos viver aqui, sem comida ou água - seu corpo estremece por inteiro
- Como assim?
- Essa caixa ou seja lá o que é isso não tem nem porta, ou seja, a gente vai morrer - suas feições me fazem dar boas gargalhadas
- Ele traz comida e água sim, bobo.
- Como?
- Você vai ver quando ele trouxer.
Ficamos ali parados por um tempo conversando e rindo
As horas foram se passando e provavelmente o dia escurecia. Estávamos deitados papeando sobre a vida e tentando não lembrar do horror que nos cercava. Os sons que antes podiam se ouvir vindo da madeira velha não eram mais perceptíveis, o rosto oval e barbudo já não nos transmitia tanto medo.
Ele descia as escadas meio desajeitado, mexia em alguns papéis, nos observava e depois desaparecia deixando questões sem respostas.
Dessa vez não era como antes. Ele conversava comigo na época em que estive aqui. Perguntava muita coisa e eu apenas respondia por medo.
- A propósito eu ainda não sei seu nome - falo enquanto me aprofundo em seus olhos azuis.
- Meu nome é Noen - ele diz envergonhado.
- Bonito.. o nome.
- Muito Obrigado, Alice - não olhava em meus olhos mas era visível o sorriso em seus lábios.
- Verdade, você já sabe o meu.
- Por que você deixa ele ter tanto poder sobre você?
- É difícil de explicar - as lembranças do passado me fazem suspirar cabisbaixa.
- Se você tentar me contar, quem sabe eu possa ajudar.
- Ele, de certa forma, é meu padrasto. - digo relutantemente.
Noen fica em choque, a boca entreaberta e os olhos esbugalhados me fazem repensar e arrependo-me imediatamente por contar o tal fato.
- Como?
- Bom, minha mãe namorou com ele por um bom tempo e ele se tornou meu padrasto.
- Isso eu entendi, mas então você sabe o nome dele e o conhece um pouco pelo menos. - ele diz intrigado.
- Na verdade não, quando ele esteve com a minha mãe, usava um nome diferente e trocou os documentos depois que viemos pra cá. Só sei disso porque enquanto arrumava uma gaveta da cozinha achei 6 identidades diferentes dele e quando o confrontei ele me explicou tudo.
- Eu não entendo o porque ele fez isso.
- Até hoje eu também não entendo. Não entendo as perguntas que ele fazia, as coisas que me mandava fazer. É como se eu fosse um jogo e o objetivo é abrir novas fases. Ele nos desafia.
- Ele vai fazer isso de novo?
- Acho que já está fazendo, talvez ficarmos juntos aqui, termos que nos conhecer e aprender a viver de forma drástica com os recursos que temos pode ser um desafio. Você não acha?
- Talvez sim.
Fiquei pensando sobre isso, se os dias forem assim talvez não seja o bicho de sete cabeças que eu pensava que seria. Mas se não for e ele implantar novas teorias malucas na nossa cabeça eu já espero o pior. Eu aguentei e fui forte a primeira vez, mas não sei se vou aguentar agora, não sei se Noen aguentará.
A pressão psicológica que alguém impõem em nós é significativa, pode mudar o mundo de qualquer um.
Estava cansada, minha cabeça rodava e queria uma cama quente e confortável pra dormir, infelizmente a realidade era outra.
Apenas o colchão fino e branco aos meus pés era o que me restava, me deitei sentindo o chão gelado e rezei para o sono me alcançar rapidamente.
Noen dormia tranquilamente enquanto minha mente pensava em tudo e todos.

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