Parte 1

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Estou perante a entrada da minha casa. Todo o necessário para invocar o homem da meia noite foi realizado, e ele agora está vagando a minha procura. Terei de vagar por cada setor agora mergulhado em escuridão.

Respiro fundo, dando uma estufada no peito. Se o espectro me pegar, receberei as visões dos meus piores temores, o que certamente marcará o meu fim, mas se por acaso eu conseguir vencer e sair ileso, então nenhum ateu me convencerá de que Deus é uma invenção do homem.

Eu olho ao redor da minha sala. Não é possível ver nada com clareza. Tudo está muito preto, e com a chama da vela, só o chão fica perfeitamente visível além dos meus pés e do meu corpo, ainda que num tom alaranjado.

Início passos lentos pela sala, sem saber exatamente para onde estou a ir. Tudo está no mais completo silêncio. Meus ouvidos estão sendo invadidos por um zumbido agudo zinnnnnn, que sempre costuma acontecer quando o silêncio domina os meus ouvidos. Comigo isso acontece todas as vezes.

Meus olhos giram para os lados constantemente quase como se estivessem automatizados a repetir isso. A tensão me faz temer a presença de qualquer vulto. Seria o homem da meia noite um ser invisível ou tão escuro quanto uma sombra? Não dá para saber. Tudo pode acontecer agora que essa entidade se encontra vagando em minha busca. Minha mãe sempre me fez acreditar em espíritos. Hoje comprovarei se as histórias que ela contou de sua juventude eram mesmo verídicas.

Olho cuidadosamente em volta para tentar localizar as escadas que levam ao andar superior.

Que engraçado, sempre pensei que o Inferno fosse um lugar quente, com fogo ondulando por todo lado, cheio de almas atormentadas berrando por clemência. Minha mãe sempre dizia para dormir cedo ou os espíritos viriam me buscar, e eu, como criança, acreditava e me tremia de medo. Se o Inferno existe, deve ser exatamente assim, um lugar escuro, rodeado pelas visões dos seus piores pesadelos, onde você comete suicídio repetidamente, mas nunca encontrará a paz da morte, sempre revivendo para cometer um novo suicídio. Sinto que estou nesse Inferno agora. Com este preto puro ao meu redor, não sinto mais que estou dentro da minha casa. Estou desafiando o mesmíssimo Satanás.

Novamente respiro fundo, dando passos lentos e suaves em direção oposta à televisão da sala. Ao final, após cerca de um minuto, as escadas de degraus marrons se materializam para a luz alaranjada da vela. Eu mantenho a expressão séria de um condenado caminhando para o local de execução.

Aproximo-me das escadas. Levanto a cabeça e olho para o fim dos degraus. Um ruído estranho trava a minha respiração. Sinto algo se aproximando das minhas costas. Meus ouvidos detectam um suspiro grave e distorcido. É ele... Não posso olhar para trás... Preciso evitá-lo a todo custo...

Minha respiração volta, soando mais alta que o comum. Subo os degraus vagarosamente, subindo um pé depois do outro, sem intenção de correr desesperado. A chama da vela é empurrada para o lado esquerdo por um sopro fraco, mas aqui não há entrada para o vento. Só há uma janela na sala perto da televisão. Não há possibilidade de um vento soprar por aqui. Mas tudo pode acontecer agora com o homem da meia noite em minha casa.

Quando chego ao fim dos degraus, à minha esquerda está o corredor que leva aos dois quartos da casa, o meu e o da minha ex-mulher, e o do meu filho, Beto. Eu fico parado, olhando para o corredor de paredes brancas e pintura desgastada totalmente escura diante de mim, mas antes de eu dar um passo, ouço pisadas baixas ecoarem dos degraus póc... póc... póc... O som é idêntico aos pisos que eu dei agora a pouco. Ele está vindo...

Ando pelo corredor, sem medo do que pode surgir atrás de mim.

Na metade do caminho, na parede da esquerda, uma porta branca de maçaneta dourada se materializa na escuridão. Esse é o meu quarto, onde eu e Mariana dormíamos juntos todas as noites. Mas meu olhar está voltado para mais adiante. No fim do corredor está o quarto de Beto coberto pela escuridão. Não consigo avistar a porta, mas sei que está lá. Quanto tempo eu não entro lá?

Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora