A claridade do dia invade a minha visão quando os meus olhos voltam a se abrir. Levo a mão ao rosto, coçando levemente os olhos. Ao descer a mão, pisco os olhos por mais alguns segundos. A luz do sol entra pela janela ao lado da TV. Sorrio de satisfação, olhando para a porta de entrada, mas logo abaixo o olhar para conferir o papel no chão diante da mesma.
Lá está o mesmo papel com o pingo do meu sangue seco e o meu nome completo escrito em lápis, do mesmo jeito que deixei quando comecei o ritual. Eu venci os meus medos, e agora estou como novo. Eu nasci de novo.
Com um pouco de dificuldade, eu me levanto do sofá. Sinto as minhas costas estalarem como múltiplos galhos se partindo. Em pé, respiro fundo, agora com a consciência limpa mais limpa do mundo. Olho para a janela ao lado da TV, logo me dirijo para lá, porém antes de olhar para a rua, eu paro diante do aparelho televisor e viro o meu foco para ele.
Mesmo tendo poucos móveis, esta casa ainda vale alguma coisa. Ainda assim vai ser difícil encontrar um comprador, mas caso eu tenha a sorte grande de conseguir vender, me mudarei para um apartamento ou comprarei uma casa em algum outro lugar da cidade.
Não me importo se irei dormir em um chão duro e frio. A ganância por bens materiais não irá sobrepor o que fez de mim o homem que eu sou, o homem que a minha mãe me criou para ser. Humildade não é apenas abrir mão da própria riqueza para ajudar o próximo, é ter a capacidade de enxergar riqueza nas pequenas coisas na vida.
Subo o olhar para ver o relógio. São sete horas e quinze minutos. Dormi bem menos que o esperado, mas o suficiente para acordar renovado. Aqui se levantou o Adão que não caiu na tentação de comer a maçã proibida.
Eu me viro de costas e olho de relance ao redor. Olho para as escadas mais a frente e caminho para lá. Durante o trajeto, olho para a minha esquerda. O círculo de sal ainda está em volta do sofá. Se alguém chegar a ver isso, perceberá imediatamente que aqui foi realizado um ritual de invocação, o que afastará possíveis compradores. Pode até que esta casa se torne mal-assombrada... Pode até que o homem da meia noite ainda esteja por aqui.
Subo os degraus um a um. Ao final, olho para o corredor. Passo andando pelo meu quarto, chegando ao quarto de Beto. Giro a maçaneta e empurro a porta bem lentamente. Entro com o coração sentindo um aperto. Tudo está exatamente igual.
Lembranças boas me fazem enxergar eu e meu filho em cima da cama durante a noite, com a luz fluorescente acesa acima de nós.
— O bicho papão é alto, verde, e dizem que é tão feio que, quando você olha para ele, você desmaia de medo na mesma hora — eu havia falado a ele. Tinha sempre que colocá-lo para dormir.
— Se esse bicho aparecer aqui, vou dar um murrão nele bem assim, ó! Pow! Pow! — Beto realizou socos no ar, rindo com gostosura. Esse seu jeito me fez esboçar muitos sorrisos, mesmo imperceptíveis, ainda assim me fazia sentir melhor por dentro, especialmente em um dia de frustração, quando as contas vinham demasiado altas ou falhava em conseguir um emprego.
Olhar para essa cama traz a dor da saudade e da culpa, mas eu consegui me perdoar. Já recebi suficiente punição por ter tirado o seu futuro.
Aproximo-me da cama, sorrindo levemente. Passo a mão sobre o lençol como se acariciasse um ente querido. Meu sorriso aumenta e meus olhos se enchem de brilho. Fungo o nariz ao suspirar. Uma lágrima cai e pinga sobre o lençol azul, deixando uma pequena marca. Esta será a última vez que verei este quarto. Prometi a mim mesmo que recomeçaria a vida do zero, mas de nada irei esquecer os bons e maus momentos que passei aqui.
Olho para a beirada lateral da cama. O homem da meia noite esteve sentado ali, coberto de trevas e melancolia... Seria aquele o anjo da meia noite? Ou o próprio Beto? Provavelmente nunca virei a descobrir. Não importa. Ele é para mim aquilo que eu acredito. Ele me fez ver a verdade e a luz.
Ainda fungando o nariz, retiro-me do quarto, dando uma última vislumbrada enquanto vou fechando a porta bem, bem devagar... e tudo vai embora. Beto descansará em paz.
Ando pelo corredor até parar diante do meu quarto. Rapidamente giro a maçaneta e empurro a porta. Olho para a cama, que está vazia e limpa. Esboço um sorriso. Mariana não foi embora do país, porém duvido muito que tenha voltado para a mãe, que sem dúvidas irá bater no peito e ladrar que as cartas disseram tudo. Mariana nunca gostou muito da mãe. Caso um dia eu reencontre Mariana, pedirei perdão, igualmente a perdoarei por haver me deixado. Sim, as cartas estavam certas, e daí? Portas novas se abrirão a partir disso. Passado é passado, e o futuro se constrói a partir do presente.
Fecho a porta do quarto em um adeus silencioso. Desço até a sala.
Olho para a entrada da cozinha e me dirijo para ela. Entro e vejo a porta fechada do banheiro. Decido entrar. Tudo aqui está em seu devido lugar e não sofreu alterações. Retiro-me sem fechar a porta. Na cozinha, olho para as gavetas, a torneira... Tudo em seu devido lugar. Ando para a sala e desta vez me dirijo até a saída da casa, porém, ao olhar para o sofá, cesso os meus passos. Ao redor do sofá ainda está o círculo de sal. Não vou perder tempo em limpar uma casa que, ao sair dela, não mais retornarei.
Paro na frente da TV e aperto para ligar. Está sintonizado no canal da Rede Ruptura, que exibe um comercial do programa Show da Mederin, um dos programas infantis favoritos de Beto. Show da Mederin costumava passar durante todo meio-dia de segunda a sexta. Sempre que Beto chegava da escola, saltava para o sofá e ligava a TV todo animadinho.
Eis que a TV se desliga sozinha. Desde o ano passado ela está com esse problema. É antiga demais para os padrões de hoje, e estamos em 2013.
Vou para a saída e paro diante dela. Abaixo os olhos e vejo os meus pés sujando o papel. Tiro os pés de cima do papel ao recuar um passo. Agacho-me e pego o papel. Leio silenciosamente o meu nome, logo em seguida eu esmago o papel, formando uma bola dentro da mão. Lançarei em alguma lixeira ou em qualquer lugar na rua.
Parece que chegou a hora. A porta está aqui, pronta para ser aberta a mostrar a trilha para um futuro incerto. Começarei uma nova vida, e com isso irei mudar de aparência, aparar a barba, cortar o cabelo, quem sabe arranjar um emprego decente se eu tiver sorte grande.
Meu coração acelera um pouco. A incerteza sempre causa temor nos mais ansiosos. Estendo a mão direita e seguro a maçaneta, porém não a giro ainda. Olho para trás e vislumbro o deserto que está a casa, clareada apenas pela luz da janela, tão empoeirada quanto um museu abandonado. Tudo ficará para trás.
Nunca fui um homem de ir à igreja, porém sempre acreditei em Deus. Nunca orei antes de dormir, para mim não havia necessidade, pois a luz dos anjos reside em nossos corações, não em nossas palavras. Somos livres para seguir com a vida a nossa própria maneira.
Volto os olhos para a maçaneta, aperto-a firmemente e giro. Empurro a porta e a luz do sol bate em meus olhos. Ergo o braço e faço sombra. Pisco bastante os olhos, antes de abri-los para o mundo. Eu sou Adão de Freitas Silva, aquele que venceu o ritual da meia noite, enfrentou os próprios medos e aprendeu a se perdoar.
O meu futuro começa agora.
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Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)
HorrorQuando a vida deixa de importar, torna-se um brinquedo que cai na mão de uma criança. É como segurar o próprio coração nas mãos e apertá-lo, sem saber que a sua vida reside dele. Brincar com a vida também significa afrontar os medos e lutar para sup...