Já são quase onze horas da noite. Está quase na hora de começar. Será hoje ou nunca mais. Não posso deixar essa chance passar.
Estou agora mesmo na garagem de casa: um amplo espaço quadrangular com piso cinza encardido, em meio à quase completa escuridão. Este é o lugar perfeito para realizar o ritual que pode determinar os rumos da minha vida para sempre.
A minha mãe saiu com o carro a ajudar uma amiga que está passando por dificuldades. Não sei quem é essa amiga e não me interessa saber, só sei que não haverá outra oportunidade de ficar sozinho dentro de casa durante a noite inteira, o ritual tem que ser feito agora. Eu não passo de um garoto obeso e idiota que deseja obter respostas sinceras, e essas respostas vão vir do outro lado, do interior das sombras. Também pretendo enviar sombras contra os meus inimigos.
Tive uma infância feliz, mas era uma criança muito acomodada e passiva. Só pensava em comer besteiras e assistir desenhos animados o dia inteiro, não praticava exercícios e quase nunca saía de casa para fazer amigos. O resultado disso foi um aumento exorbitante de peso e uma moleza acima do comum. Tornei-me um fraco exacerbado.
Minha mãe, Taciana Luciana de Souza, mulher de quarenta anos, cabelos loiros e pele clara, sempre me deu toda a comida que sempre lhe faltou durante toda a sua infância, todo o conforto que ela carecia quando morava no interior com a sua madrasta e todo o amor que foi denegado por aqueles que deviam tê-la amado desde sempre.
Quando fiz onze anos e fui me desenvolvendo como adolescente, toda a minha felicidade foi substituída pelo tormento do bullying. Na escola eu era sempre zombado pelo meu excesso de peso, pela timidez de me aproximar dos outros, em especial das meninas mais atraentes. Sempre quando chegava perto de uma eu simplesmente começava a suar de maneira incontrolável. Meus lábios tremulavam desenfreadamente, meu coração acelerava, e eu mal conseguia proferir um A da boca sem gaguejar. Esse é o preço pela minha infância feliz? Eu havia me feito essa pergunta várias vezes.
Todos os dias eu sou ridicularizado. Os garotos me chamam de gordo bovino, baleia, leitão... Eles me empurram, riem da minha cara, e as meninas fazem questão de chegar perto de mim só para me ver suando loucamente. Algumas até chamavam as amigas para me cercar e passar a mão em mim. Eu me sentia sufocado com tudo aquilo. Todo dia eu vivo um inferno.
Carlos Pereira Junior, um garoto de pele negra, era o único que eu pensava que podia confiar dentro daquele ambiente hostil. Desde os onze anos de idade, ele tem sido meu único e melhor amigo. Ele sempre soube que eu era apaixonado por Renata Dias, a menina mais linda que eu havia visto na vida: loira, pele alva, olhos verde-claros, alta, cintura fina, e estudava na mesma sala que a minha. Obviamente eu me sentava bem longe dela, na penúltima cadeira da parede à esquerda, enquanto ela sentava na primeira da direita, bem perto da saída.
Se eu não conseguia chegar perto de nenhuma garota que tivesse um mínimo de beleza, da Renata, então, achei que poderia literalmente morrer se tentasse... e isso quase aconteceu...
Lembrar aquele dia faz o meu peito sofrer um aperto gélido e cru, ainda assim eu permito a minha mente a puxar as lembranças para dentro de mim. Preciso recordar o motivo de eu estar fazendo este ritual.
Durante o dia dos namorados, dentro das escolas é comum alunos pagarem o cupido (aluno fantasiado de anjo) uma pequena quantidade de dinheiro para enviar uma declaração de amor à outra pessoa dentro da escola, e na Escola Santa Estrela não era diferente.
Carlos, aquele que pensei ser meu único amigo, pregou uma peça que quase custou a minha vida. Quando o cupido entrou na nossa sala para anunciar as declarações de amor, a primeira dizia que eu havia enviado para Renata.
— Teus lábios são como doce que enche minha língua de sabor — o cupido havia anunciado, com a carta vermelha em forma de coração na mão. — Teu cheiro intenso é como a mais bonita flor do jardim do meu sertão. Meu amor por ti é maior que o sol que ilumina todos os corações da Terra. Para sempre te amo e para sempre te amarei. Meu amor, minha amada, minha querida flor, aceite o meu amor e venha namorar comigo.
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Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)
HorrorQuando a vida deixa de importar, torna-se um brinquedo que cai na mão de uma criança. É como segurar o próprio coração nas mãos e apertá-lo, sem saber que a sua vida reside dele. Brincar com a vida também significa afrontar os medos e lutar para sup...