Final

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Leonilda ruge um som de carne sendo mastigada. Seu modo de andar é lento e levemente desengonçado. Seu cabelo jogado para frente esconde a maior parte do rosto, mas, com os suaves balançados, é possível ver por um milésimo de segundo uma parte do seu rosto chupado, pálido e franzido em ódio.

Eu dou meia volta e corro na sua direção oposta, cambaleando em vários momentos, com o medo gritando alto dentro de mim. Estou a usar toda a força das minhas pernas velhas. Não sei o quão poderei aguentar, mas não posso ficar parado a esperar uma morte agonizante. Não era isso que eu planejava. Não esperava sentir essa dor.

O homem flutuante aparece na escuridão a minha frente, com os braços abertos. Ele pousa suavemente no chão, abaixando as mãos de espeto. Começa a caminhar na minha direção tão majestosamente quanto um homem da antiga realeza e tão lento quanto um velho acabado.

— Vicente Valmir Menendes — ressoa altamente a voz do padre por todo o ambiente. — Você aceita Leonilda Josefa dos Santos como sua legítima esposa com a promessa de amá-la e respeitá-la — os dedos de espeto do homem flutuante se esticam longamente na minha direção. Eu rapidamente faço uma curva para a esquerda e avanço, dando uma e outra tropeçada. — Na alegria e na tristeza — passos me perseguem atrás, acompanhados de murmúrios que cantam repetidos murrrrr murrrrr! — Na riqueza e na pobreza — a voz do padre soa mais grave e distorcida, como a de um espectro impregnado de trevas. — Na saúde e na doença — Leonilda aparece nas sombras a minha frente, caminhando rápido na minha direção. — Até que a morte os separe?!

Leonilda some e reaparece na minha frente, agarrando os meus ombros e me sacudindo. Sua bocarra abre e emana um grito choroso e agudo que entoa juntamente com os murmúrios MUÁRRRRRRRR! Eu não grito e nem me retorço. Sei que será em vão.

Sou atirado violentamente no chão. Os ossos das minhas costas estalam como múltiplos galhos se partindo, como uma árvore dando os seus últimos frutos. Respiro forte, com a boca aberta puxando ar. Arrasto-me para trás com o cotovelo direito. Leonilda caminha na minha direção, bem devagar. Eu balanço os pés em esforço para me afastar dela através de deslizes. Quando me vejo a dois metros de distância dela, concentro todos os meus esforços em me colocar de pé outra vez, e com a graça divina eu consigo fazer isso, apesar de sentir parte do corpo doendo de fraqueza.

Até que a morte os separe...

Até que a morte os separe...

Até que...

Eu volto a correr dela, dando uma e outra mancada na perna direita. Olho para a direita e vejo o homem flutuante me acompanhando a alguns metros de distância. Olho para a esquerda e vejo Leonilda parada, passando tão rápida quanto um vulto fantasmagórico.

Eu não vou sair vivo daqui, mas em meio ao desespero eu guardo dentro de mim uma fagulha de fé, não de que sairei daqui, pois isso não será possível mesmo se eu implorasse. Guardo a minha fé para o que vai vir depois de tudo isto. Se existe Céu ou Inferno, estou prestes a descobrir. A morte é uma certeza inevitável. Toda história precisa encontrar um fim. Todos nós passaremos pelo nosso próprio Purgatório; nosso último e maior castigo que decidirá o destino das nossas almas.

Imagens de Leonilda vão passando por meu derredor na forma de telas transparentes, flutuando num colorido tênue e oscilante. São nossas fotos da juventude, nossas viagens, encontros e momentos de lazer. Todas as imagens vão passando e ficando para trás à medida que sigo a fugir. O homem flutuante aparece na minha frente, abrindo os braços e voando para o alto quando estamos prestes a colidir, permitindo minha passagem.

Até que a morte os separe...

Até que a morte os separe...

Até que...

Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora