Parte 4

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Permaneço parado contra a parede do banheiro, bem ao lado da cortina do chuveiro. Fico encarando a porta, apenas a espera de uma ação do espectro para tentar abri-la ou de alguma forma tentar chamar a minha atenção. Com o ambiente mergulhado em silêncio, meus ouvidos detectam o som de uma respiração forte vindo atrás da porta. Ele está me esperando. Sabe que não posso ficar aqui todo o tempo. Cedo ou tarde ele abrirá essa porta.

Punc. Algo bate na porta. Não foi uma cabeçada, mas a batida de uma mão pequena e frágil, a mão de uma... criança...? Punc... punc... punc...

Viro o olhar para o espelho ao lado e encaro o meu reflexo. Estou um pouco distante, mas com a tênue luz da vela posso ver o meu corpo vestido com a camiseta branca, enquanto meu rosto e meu pescoço estão camuflados nas sombras.

Minutos de silêncio duradouro me causa um mínimo de tranquilidade. Ainda assim eu mantenho os olhos atentos à porta. De repente, a maçaneta começa a girar lentamente. A porta emite um rangido, mas não abre mais que uma brecha miúda. Daqui não dá para ver o que está atrás da porta.

Alguns segundos se passam. Eu mantenho os olhos travados na porta. Estendo a vela para frente, clareando mais a porta. Não dá para ver com clareza. Ando um passo e agora sim eu consigo ver. Há três dedos saindo da brecha da porta, como raízes vivas e rastejantes. São os mesmos dedos longos e pontiagudos que quase me tocaram na testa.

Não tomo reação de medo ou de surpresa. Já era hora de ele aparecer. Muórrrrr... Um rosnado ressoa atrás da porta, como de uma fera faminta. Estou como uma presa encurralada.

Mantenho a mão esquerda segurando o isqueiro dentro do bolso. Viro o olhar para a chama da vela, que continua bem acesa. A porta se abre um pouco mais, sem ranger. Em questão de um segundo, a porta se abre completamente, revelando a mais pura escuridão, algo que nem a vela está conseguindo clarear, e eu não estou tão distante. Olho de relance para o espelho ao lado. Nada de anormal. Retorno o olhar para a porta. Os dedos da outra mão do espectro também estão rastejando, porém na outra parede. São pretos com listras brancas, como a pele de uma zebra.

Os sussurros voltam a ecoar em meus ouvidos. Ponho os lábios para dentro da boca, respirando muito pelo nariz. Meus olhos piscam. Um rosto aparece na escuridão da saída, o mesmo rosto branco e sorridente.

Os sussurros aos poucos vão ficando mais altos e ressonantes. Então resolvo me manifestar.

— O que é você...? — minha voz sai mais baixa que o normal. O rosto dele me encara com os olhos redondos e negros, imóvel e quieto como uma criança obediente. A vela se apaga e o escuro cobre a minha visão. Saco ligeiramente o isqueiro. Acendo a vela a tempo. Olho para a saída. Ele não está mais ali.

Dando passos lentos, retiro-me do banheiro. Na cozinha, olho para a minha direita e vejo tudo escuro. Olho para a porta a frente. Não sei mais onde procurar o sal.

Ando um pouco pela cozinha, depois me dirijo à sala. Olho para os meus dois lados, vendo o completo breu me circundando. Já estou ficando familiarizado com o breu. Mais a frente eu avisto a minha TV. Paro na frente dela, mirando ao redor. Com o isqueiro ainda na mão, enfio-o de volta no bolso, ao mesmo tempo eu abaixoa mão que seguro a vela para poder descansá-la um pouco, voltando a erguê-la segundos depois. Olho diretamente para a chama da vela, minha única proteção. Eu costumava acender velas para a Virgem Maria. Agora estou acendendo para mim mesmo.

Viro-me para averiguar o relógio, que marca 01h45. Desço um pouco o olhar e vejo a imagem de Cristo abaixo do mostrador. Não sofreu nenhuma alteração.

Ouço a porta de um quarto do andar superior bater. Viro-me para a direita. Ando em frente, passando na frente da televisão. Paro ao chegar próximo à porta de entrada. Olho para o chão. Lá está o papel, desta vez completamente em branco, sem nada escrito, apenas o meu sangue ressecado.

Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora