Eu permaneço parado por uns minutos frente ao relógio ao lado da TV. Não consigo me lembrar de onde deixei o sal. Aparentemente, evitar o homem da meia noite não será o único motivo pelo qual vagarei pela minha própria casa.
Um barulho contínuo ecoa acima de mim. Levanto a cabeça para o teto e ouço algo caminhando a passos leves. Semicerro os olhos. Viro-me para a direção oposta a televisão, mais precisamente para a direção das escadas. Ele está descendo para cá... Deve saber que estou aqui embaixo...
Olho para os meus dois lados. Viro-me e ando para a esquerda, dando rápidas miradas à minha direita a ver se avisto o espectro. Felizmente só vejo sombras mortas.
Olho para a minha esquerda e vejo a entrada da casa. Paro na frente dela. Olho para baixo e vejo o papel no chão, iluminado em laranja pela vela. Aperto os olhos quando vejo algo escrito em letras minúsculas. A curiosidade me faz agachar. Olho de relance para o lado. Não sinto a presença dele. Provavelmente foi para a cozinha. Não sei se o espectro é cego ou algo do tipo, ou pode estar apenas brincando comigo, ou pode que a chama da vela o esteja enfraquecendo, não dá para saber.
Retiro a mão direita do bolso, logo a abaixo e puxo o papel. Aperto bem os olhos para ler as letras pequenas e vermelhas. Levantando-me com o papel na mão, aproximo-o mais do meu rosto.
"Por que não te perdoas?"
— Por que não te perdoas...? — repito num sussurro. Abaixo o papel lentamente, fixando os olhos na madeira da porta, atônito. Por que eu não me perdoo? Como posso me perdoar por destruir o futuro do meu filho? Ainda é possível recomeçar mesmo carregando essa culpa? Pode um pai viver com essa cruz nas costas?
Ponho o papel de volta no chão, exatamente na mesma posição que estava antes. Volto a me levantar, apoiando a mão direita sobre o joelho. Afundo a mão de volta no bolso e aperto o isqueiro.
Tenho que seguir em frente, mas mais importante que isso é encontrar o bendito sal. Há apenas um lugar a se procurar agora: o quarto do meu filho Beto.
Viro-me para trás. Olho para a televisão à minha direita, então inicio passos na direção diagonal direita, sem tirar os olhos da TV, até que passo a andar exatamente na sua direção oposta.
Durante o trajeto, ouço a água da torneira pingando. O som do pingo ecoa alto e agudo, possivelmente a torneira da cozinha. O homem da meia noite está lá. Ainda assim eu continuo a seguir em frente, encarando o escuro diante de mim.
A claridade da vela faz as escadas se projetarem na escuridão. Subo dando passos leves. A subida ocorre bastante tranquila. Ando pelo corredor, passo direto pela porta que é, ou melhor, já foi o quarto meu e de Mariana. Quando avisto a porta do outro quarto mais a frente, noto que ainda está aberta para dentro.
Tristes e boas lembranças invadem a minha mente de maneira convidativa. Vejo tudo como se ainda fosse de dia, Beto correndo com o robô de brinquedo levantado acima da cabeça para um lado e para o outro por este corredor.
— Bou! Bou! Bou! — ele imitava sons de tiro. — E o Coronel Fortitude vence o mal e salva o dia mais uma vez! Éééééé!
— Beto — eu chamei desde a sala. — Vem fazer o dever, ligeiro — estava estressado naquele dia, mais um sem conseguir arranjar um emprego. Diferente dos padrões familiares comuns, Mariana era quem trabalhava e trazia dinheiro para casa. Eu, desempregado, fazia o papel da dona de casa. — Esse é o último aviso! Vem fazer o dever senão juro que quebro esse boneco no chão!
Não havia demorado para ele descer. Já quebrei alguns brinquedos na frente dele para mostrar autoridade, e por nada neste mundo ele ia querer que o seu boneco favorito fosse destruído. Coronel Fortitude é um personagem de um desenho animado japonês de super-heróis, um dos mais famosos pelo mundo afora, e como toda criança, Beto atazanava a mim e Mariana para ter um boneco dele em casa, pois todos os garotos da escola tinham e só ele não.
Prometi que compraria se ele passasse de ano na escola. Ele cumpriu e eu fui numa loja comprar, para então me surpreender com o preço do boneco que era quase o olho da cara. Se eu não levasse o boneco naquela hora, ele poderia me odiar para sempre e se sentir desestimulado a tirar notas boas na escola, então tive que tomar a difícil decisão de roubar um boneco da loja, enfiando-o no fundo do bolso enquanto ninguém estava olhando e saindo da loja discretamente.
Beto sempre foi um tremendo bagunceiro. Seu quarto parecia um lixão, com tudo jogado pelos cantos, roupas, brinquedos, sapatos, até as coisas da escola, lápis, cadernos, livros, estojos... Eu limpava tudo sem resmungar, mas tinha que impor certos limites. Apesar disso eu nunca o privei de ser criança.
Minha vida mudou muito desde que me casei. A mãe de Mariana me odiava com todas as forças. A mulher era uma cartomante e dizia prever o futuro. Tinha uma pele parda muito bem conservada. Seus cabelos eram tingidos de preto, mais parecendo uma mulher de quarenta e poucos anos quando na verdade tinha sessenta. O nome dela era Sofia.
— Você é um insolente — Sofia havia falado com fogo nos olhos e o dedo me apontando. — Você é um vagabundo fracassado! Você não pode se casar com a minha filha! Eu não vou permitir isso!
— Mãe, para com isso — Mariana havia gritado. A discussão estava ocorrendo na porta da casa dela, durante uma tarde ensolarada. — Já tô bem grandinha pra senhora tá mandando na minha vida! Chega, eu vou embora daqui! Não aguento mais!
— Minha filha, pelo amor de Deus, não faça isso! As cartas disseram tudo! Ele vai quebrar o teu coração! Ele não é homem pra você, o Pedro que é! As cartas nunca erram! O Pedro que é o homem perfeito pra você, não ele!
Mariana rebateu:
— A senhora só puxa o saco do Pedro por que ele tem dinheiro, mas eu quero amor, e é Adão que eu amo, não aquele idiota mauricinho! Ele nunca vai me amar como Adão me ama!
— Ah, é?! Pois vá, então! Pode ir! Ele vai dar a você a maior decepção da sua vida daqui a poucos anos! Vai tirar de você aquilo que você mais vai amar na vida! Quando isso acontecer, o amor de vocês vai ter sido um fracasso e eu vou ter todo o direito do mundo de bater no peito e gritar que as cartas disseram tudo! Elas nunca erram!
Em nenhum momento eu me envolvi na discussão, simplesmente estava a esperando dentro do carro, com o rádio ligado tocando uma música de rock clássico. Depois que Mariana entrou, eu acelerei o carro, enquanto atrás ainda era possível ouvir os berros de Sofia repetindo que as cartas disseram tudo e que elas nunca erravam.
Quando chegamos à nossa casa, Mariana foi recebida a abraços por dona Nilza de Freitas Silva, a minha mãe, uma senhora de baixa estatura, pele rosada já cheia de rugas e cabelos grisalhos. Ela apresentou toda a casa para Mariana, e no final disse que era tudo de nós dois. Minha mãe sempre adorou o ar puro do interior, e por isso estava indo morar com o meu primo Francis na antiga fazenda do nosso avô.
Antes de ir, minha mãe deu um último beijo na minha testa, e terminou com um "Deus te abençoe, meu filho". Aquela foi a última vez que nos vimos antes de sua morte. Nunca chegou a conhecer Beto.
Aquela noite parecia que eu e Mariana havíamos acabado de chegar de nossa festa de casamento, com a diferença de que não estávamos vestidos formalmente. Nós nunca fomos casados oficialmente, entretanto, quando nos deitamos na cama, eu lhe sussurrei:
— Enfim sós...
Dias depois, Beto começou a crescer em sua barriga.
— Tá vendo? — disse a enfermeira durante o exame. — É um menino — e Mariana sorriu com os olhos lacrimejando em alegria.
Tudo estava indo bem, exceto pelo fato de eu não conseguir um emprego e Mariana ter que trabalhar para sustentar a casa. Aquilo me deixava um pouco mal, mas estávamos felizes como uma família formada. Ficamos mais ainda com a presença de Beto em nossas vidas.
Mas então o acidente levou tudo embora. Minha vida virou de cabeça para baixo por causa de uns golinhos a mais de vodca. No final das contas, as cartas de Sofia estavam certas. Tirei de Mariana aquilo que ela mais amava na vida, e o nosso amor resultou em um grande fracasso.
Toda a claridade vai se dissolvendo, retomando o escuro que está o corredor. O quarto de Beto a frente está mergulhado no vazio da solidão, igual que a minha vida.
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Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)
HorrorQuando a vida deixa de importar, torna-se um brinquedo que cai na mão de uma criança. É como segurar o próprio coração nas mãos e apertá-lo, sem saber que a sua vida reside dele. Brincar com a vida também significa afrontar os medos e lutar para sup...