Saco o meu celular do bolso e ligo a tela, mas nada acontece. O celular está descarregado. Guardo-o de volta no bolso. Tiro a expressão de medo da face. Olho para a saída do quarto com desafio. Mas antes de pensar em ir, viro o rosto para a cama de casal atrás de mim, a cama dos meus pais... Do jeito que eu pensava que eles se amavam na cozinha, nem quero imaginar durante a noite enquanto estavam deitados. Mas isso já passou. Meu maior desafio eu estou indo enfrentar agora.
Viro-me para a janela. As cortinas brancas estão abertas. Por trás do vidro está o asfalto acinzentado totalmente afundado na quietude da noite, enquanto aqui dentro estou afundada na quietude do medo.
Puxo ar pelo nariz. Viro-me para a saída do quarto. Solto o ar pelo nariz. Ando um primeiro passo lento e suave. Uma súbita frieza ataca a minha pele e faz os meus pelos se empinarem. Ando três passos rápidos. As escadas estão exatamente iguais, marrons e rodeadas de trevas. Não há nada lá embaixo; nenhuma presença maligna.
Desço o primeiro degrau. Paro a tentar escutar algum ruído. Nada exceto a minha respiração. Sempre considerei a incerteza minha pior inimiga... E eu não estava errada quanto a isso.
Desço o segundo degrau. Desço o terceiro degrau. Atento-me novamente a ouvir algo. A continuidade do silêncio reforça a presença da minha inimiga incerteza. Desço o resto dos degraus com mais rapidez, deslizando a mão na parede lateral. Vejo a televisão ainda ligada, clareando a sala. Olho para o sofá, a porta de saída, a mesinha com as latas de cerveja amassadas em cima, a porta do banheiro a minha direita... A boneca não está aqui.
Mantenho os olhos fixos na porta do banheiro, que está aberta para dentro. Ando para lá, com a audição atenta a tudo. Ao parar na entrada do banheiro, olho de relance para trás. Na TV ainda está passando o Jornal Madrugador. Na tela mostra uma senhora chorando em desespero em cima de uma calçada de argamassa. As legendas na parte inferior da tela estão falando sobre crianças que estão desaparecendo sem deixar rastros.
A boneca não está aqui, mas não posso me dar por segura ainda. Cedo ou tarde vamos ter que nos enfrentar cara a cara. Posso não estar pronta, mas vai ter que ser agora.
Olho para frente, na direção da banheira, que está invisível nas sombras. Engulo a seco, estremecendo. Dou mais alguns passos e a banheira cheia de água ganha forma no meio da escuridão. Abaixo lentamente os olhos. Lá está o alfinete. Sim, é o mesmo alfinete que usei para perfurar a Clarinha... E a Clarinha não está aqui.
Agacho-me e corro os dedos sobre o chão frio até pegar o alfinete com os dedos polegar e indicador. Levanto para perto do meu rosto. Não parece que foi tocada. Se a Clarinha não está aqui, estariam então duas bonecas me perseguindo?
Punc. Meu coração para por um segundo. Ponho-me de pé e rodopio. O barulho veio da escada do meu quarto. A televisão emite um brilho forte e branco, logo começa a piscar freneticamente. Movo um passo adiante, depois movo outro mais devagar. Uma presença maligna está presente, posso sentir.
Ao alcançar a entrada, uma dor de pontada na cabeça me faz piscar os olhos uma e outra vez. A TV escurece e nada consigo ver. Punc. Novamente o barulho, e realmente veio do meu quarto. Está descendo para cá. Deve saber que lá está o instrumento que me fará vencê-la. Punc. Punc. Punc. Não está mais vindo do meu quarto, está muito mais perto... Está aqui.
Sinto o sangue gelar e o queixo balançar.
A TV volta a clarear num branco forte. Frente à cozinha está ela, a boneca de pele verde rachada, olhos negros arredondados e bocarra no formato de um círculo maior todo negro. Na sua mão está uma faca de lâmina enferrujada e imunda. Esse é o espirito que eu invoquei para brincar de esconde-esconde.
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Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)
TerrorQuando a vida deixa de importar, torna-se um brinquedo que cai na mão de uma criança. É como segurar o próprio coração nas mãos e apertá-lo, sem saber que a sua vida reside dele. Brincar com a vida também significa afrontar os medos e lutar para sup...