Parte 1

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Olha o gordo bovino aí — os garotos iniciaram uma chiadeira generalizada enquanto me empurravam para todas as direções à medida que eu ia passando por entre eles, tropeçando para um lado e para o outro numa dança toda atrapalhada, lutando para caminhar pelo pátio da escola para a minha sala, com o prato da merenda na mão chacoalhando e derramando conteúdo pelas bordas.

— Tem que passar a faca nesse boi — um deles caiu no riso. — Vai dar um churrasquinho apetitoso!

— A gente pode fazer melhor — outro chamou a atenção. — Bora dar ele pras raposas! Aposto que ele tem gostinho de frango! Ele não parece um frango?!

— Eita que bateu uma fome danada agora — outro me empurrou para o lado. Eu lutava para ignorar aquilo. Todo mundo ficava olhando, rindo, murmurando com um sorriso de maldade na face.

— Olha lá, que idiota — sussurrou uma garota para outra, rindo. — Coitado...

— Esse aí tem jeito não — sussurrou outra. — A mãe deve morrer de vergonha...

— Se eu pudesse voltar no tempo — riu um garoto. —, ia convencer a mãe a abortar ele assim que engravidasse! Eu dizia: "tira ele da barriga e joga no lixo".

Qualquer um sentiria ódio daquilo, mas eu sentia vergonha de mim mesmo. No fundo eu sabia que eles não estavam totalmente errados.

Muitas vezes a merenda era derrubada no chão de propósito por um deles. Eu tentava de todas as formas evitar me aproximar dos outros, porém sempre me surpreendiam de algum lado, simplesmente apareciam do nada. Quando aqueles desgraçados faltavam aula, eu desejava secretamente para que nunca mais voltassem. Melhor, desejava que estivessem enterrados vivos dentro de caixões cheios de espinhos.

Na semana passada, muito antes de dona Marcinha dar a notícia da morte do garoto, enquanto eu estava com o prato na mão andando na direção de uma cadeira do pátio para comer, eu olhava constantemente para os lados, imaginando que alguém iria derrubar meu prato a qualquer momento. Quando cheguei perto da cadeira, respirei em alívio por um breve instante.

Mas então alguém veio na minha direção: um garoto alto de cabelos castanhos e pele clara.

Tá maluco, ô?! — Gilson Fernandes desferiu uma tapa na minha mão e fez o prato esvoaçar para o chão, esparramando toda a comida. — Se comer assim vai terminar explodindo, idiota — ele olhou de soslaio o prato derramado, que continha arroz com salsicha de boi. — Olha, gente, ele ia comer os próprios primos dele!

Todo mundo extravasou gargalhadas. Eu abaixei a cabeça, apertando os lábios, lutando para as lágrimas não subirem aos meus olhos. Todos os dias eu entrava no colégio já com o desejo de sair dele. Eu não sei o que me motivava a continuar sofrendo calado. Minhas notas na escola eram sempre muito boas. Acredito que, por causa disso, os professores quase nunca me davam atenção, porém ninguém reconhecia o meu mérito exceto a minha mãe. Mesmo que eu começasse a tirar notas baixas do nada, a única atenção que eu ia receber seriam as broncas da minha mãe. Eu fiz isso uma vez, errando o máximo de questões possíveis em todas as provas, mesmo sabendo quais eram as respostas corretas.

Quando minha mãe viu as notas vermelhas no meu boletim, ela gritou comigo.

— O que é isso, Tarcísio?! O QUE SIGNIFICA ISSO AQUI?! — pude sentir a fúria em sua garganta, mas o que mais me assustou foi o seu olhar de fúria penetrante. — Se não vai explicar, então trate de melhorar essas notas senão eu juro que te deixo de castigo o ano inteiro! Pior, eu te encho de chibatadas, VOCÊ ENTENDEU?!

Eu respondi aquilo com silêncio e cabeça baixa. Eu havia feito aquilo pensando em lhe contar sobre os abusos que sofria na escola. Tive sucesso em lhe chamar a atenção, sim, mas fracassei em botar tudo para fora como prometi a mim mesmo que iria fazer.

Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora