Final

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Dentro do meu quarto, eu posiciono o boneco do Coronel Fortitude em cima da gaveta. Retiro-me do quarto e vou dar uma última checada na garagem, que está completamente vazia e limpa. No mesmo minuto eu me dirijo para a sala, e lá eu me sento calmamente no sofá para aguardar a minha mãe chegar.

O ritual já terminou, e desta vez eu estou decidido a contar tudo para ela. Aprendi a lidar com os meus problemas que nem um herói enfrenta um vilão, que nem o Coronel Fortitude faz na TV.

Lá fora o dia já está clareando. São cinco da manhã. Em breve a minha mãe irá estacionar o carro e entrar em casa.

A parte mais difícil não será contar tudo. Na verdade, a parte mais difícil já foi superada. Eu perdoei os meus inimigos que todos os dias infernizam a minha vida e destroem a minha autoestima. Carlos Pereira, Renata Dias, Gilson Fernandes e todos os que me abusam diariamente, são apenas humanos imaturos, e eu os perdoo por tudo, pois sei que no futuro eles irão amadurecer e reconhecer o erro que cometeram comigo, e quando isso acontecer, pois sinto que irá acontecer, irei abraçá-los e aceitar os seus pedidos de desculpa. Mas mesmo que não cheguem a pedir perdão, seja por vergonha ou mesmo por temor, irei perdoá-los mesmo assim. Soltar palavras não engrandecem corações, mas libertam almas de suas prisões. O perdão silencioso é tão libertador quanto ser curado de uma doença. Neste caso, ódio era a minha doença, e o amor me trouxe a cura.

Todos os objetos do ritual já foram guardados em seus respectivos lugares. As cadeiras eu coloquei de volta na cozinha. Os espelhos voltaram para o lugar de onde os tirei. Um voltou para o armário do quarto da minha mãe e o outro voltou para o banheiro. As velas eu guardei nos armários da cozinha, e o meu boneco do Coronel Fortitude vai ficar sempre lá no meu quarto. Ele será o símbolo desta minha vitória, do dia que eu me libertei dos grilhões da minha própria ignorância.

De repente, ouço um carro estacionar no lado de fora. Minha mãe chegou. Eu deveria estar nervoso agora, mas não. Estou mais do que pronto para colocar tudo para fora. Não preciso mais ter medo do imprevisível, pois o pior já passou. Realizando o ritual, aprendi a arcar com as consequências, sejam boas ou ruins, e, principalmente, aprendi a não mais guardar mentiras dentro de mim, a não mais me sufocar com elas, mas não apenas isso, eu aprendi a ter fé naquele que me guiou até aqui, o Deus que mostrou piedade a um ser descrente.

Percebi que é muito melhor ter uma pequena chance de mudar para melhor do que se prender a um presente tortuoso, simplesmente pelo medo de tudo ficar pior. Não vejo mais como tudo pode piorar. Minha vida já é um inferno diário. O pior que pode acontecer é eu me manter omisso a esse medo que é apenas fruto do meu próprio imaginário, que me aprisiona e me tortura dia após dia, tornando-se cada vez pior. Eu tenho que matar o bobo dentro de mim e me transformar em um rei, um líder capaz de trilhar o seu próprio destino.

Mas para me transformar em um rei, primeiro eu preciso me declarar para a minha rainha. Ela é quem segura a minha coroa, e será aquela que a colocará na minha cabeça.

A maçaneta gira e a porta abre. Taciana Luciana de Souza entra vestida com um casaco cinza e o celular na orelha.

— Tá tudo resolvido aí no aeroporto, Mariana? Ah, já tá dentro do avião? — ela fecha a porta na chave e joga-a sobre uma mesinha ao lado. — Graças a Deus, minha amiga... Manda um beijo pra sua irmã quando chegar no Rio de Janeiro, tá bom? Beijos. Se cuida — desliga o telefone e enfia no bolso lateral da calça jeans branca. Quando se vira para andar pela sala, percebe a minha presença aqui, encarando-a em um silêncio triste. — Tarcísio? — ela me olha estranho, pestanejando. — Que cara é essa? Por que tá acordado assim tão cedo? Aconteceu alguma coisa?

— Sim, mãe — falo com firmeza. — Aconteceu sim...

— O quê? O que foi que aconteceu? Tarcísio, você tá me assustando...

— Eu perdoei eles, mãe — solto para fora, já sentindo um peso saindo das minhas costas. — Eu perdoei os meus inimigos...

— Inimigos? — ela franze o cenho. — Tarcísio, do que você...

— Eu perdoei os garotos que me abusavam na escola, que me agrediam, que me xingavam, que me humilhavam... Eu já não guardo mais nenhum rancor deles... Por que eu perdoei todos eles...

O olhar da minha mãe demonstra não estar entendendo nada, e eu já estava esperando isso. Agora que comecei é hora de ir até o final, enfim mudar o meu rumo, colocar a coroa de ouro na minha cabeça.

— Tarcísio, que história é essa? — ela começa a se assustar. — Garotos te agrediam na escola? — eu balanço a cabeça para ela, confirmando. Ela abre a boca, perplexa. — Mas... Mas por que não me contou?! Você tinha que denunciar isso pra diretoria da escola! Eu podia...

— Eu tinha medo — sinto as lágrimas umedecendo os meus olhos. — Tinha medo de te perder — meus lábios tremem, e eu sinto uma lágrima rastejando na minha bochecha. — Tinha medo de como a senhora ia reagir... Tinha medo de... — fungo o nariz, abaixando a cabeça, com a voz trêmula e interrompida. — Tinha medo de... — depois disso o meu choro não me permite dizer mais nada, simplesmente solto tudo para fora. As lágrimas que estão caindo não são mais de tristeza, mas de alívio, o maior e mais profundo que eu poderia sentir. O choro da libertação. Eu consegui... Finalmente consegui...

— Oh, meu filho — ela vem correndo e se agacha na minha frente. — Meu amor, você tinha que ter me contado — toca a minha bochecha com a mão. Eu levanto os olhos para encará-la, fungando muito o nariz.

— Eu te amo... mamãe... — fungo ainda mais, com o rosto inteiramente molhado. — Eu descobri que a senhora é a minha rainha... A senhora é a minha realeza — levanto-me do sofá e me atiro nos seus braços em um abraço forte. — Eu era um bobo da corte esse tempo todo... Mentia pra mim mesmo... Mentia pra senhora, pra minha rainha... Mas agora eu sei... Agora eu sei quem sou de verdade — afasto o rosto e encaro os seus olhos profundamente, sorrindo. — Eu sou um rei... E a senhora é a minha rainha...

Com os olhos úmidos e brilhando, nos lábios dela se forma um sorriso tênue, porém emocionado. Com uma leve tremedeira de dedos, sua mão sobe e acaricia suavemente a minha bochecha.

— Essas foram as mesmas palavras do seu pai quando ele se declarou pra mim — dá um suspiro trêmulo e falho, enquanto uma lágrima escapa de um de seus olhos. — Você é igualzinho a ele — analisa o meu rosto da testa até o queixo. — O meu rei me deixou um príncipe... O príncipe da minha realeza — seu sorriso agora mostra dentes brancos. — O meu querido filho...

Nossos corpos voltam a colidir em um abraço forte e apertado, com suas mãos fazendo carinho nas minhas costas e as minhas lágrimas de alegria molhando o tecido cinza do casaco em seu ombro.

Finalmente consegui. A superação do ritual me ajudou a criar coragem para este momento, e tudo graças a Ele, que me guiou através dos seus anjos da escuridão. Se tudo aquilo que vi era real ou apenas fruto da minha mente, não importa. Não quero buscar nenhuma resposta para isso, quero apenas acreditar que tudo foi real, e que os três reis eram anjos enviados para me salvar. O ritual dos três reis conseguiu me salvar de mim mesmo.

Não sei o que vai acontecer a partir de aqui, mas uma coisa é certa: eu irei para outra escola, e nela buscarei ser melhor em tudo que sempre almejei ser, deixar meu pessimismo de lado e viver a juventude como todos os outros, traçar o meu futuro e lutar por dias melhores. Eu sou Tarcísio Luciano de Souza, aquele que realizou o ritual dos três reis, aprendeu a perdoar aos que o ofenderam e criou coragem para mudar o próprio rumo em busca de dias melhores.

O meu futuro começa agora.

Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora