As escadas para descer aparentam ser longas. Uma queda e eu girarei por longas e longas horas sem parar, ou quem sabe nunca termine até a minha consciência apagar. Se isso acontecer, não fará diferença. Apenas antecipará o que já estou aguardando desde o meu abandono. Posso acabar com isso a qualquer segundo por vontade própria, mas para mim não existe pecado maior que o ato de tirar a própria vida.
Olhar para estas escadas traz de volta uma recordação do passado, do dia que eu caí de uma escadaria no dia em que fui pagar uma visita a Miguel dentro da firma onde o mesmo trabalhava.
Eu tinha meus sessenta e quatro anos na época. Já estava caindo aos pedaços e Leonilda já tinha falecido. Apesar disso eu ainda estava grato de estar vivo para poder ver Miguel virar um homem de sucesso. Naquele momento da minha vida, o que eu mais queria era ter um neto, ser tão bom para ele ou ela quanto fui para o meu filho.
No dia em que rolei escadaria abaixo, bati com a cabeça no chão, mas não perdi a consciência completamente. Ainda pude ouvir Miguel berrando desesperadamente para chamarem uma ambulância. Gritos se amontoaram ao meu redor. Em um momento eu abri tenuemente os olhos e pude ver pessoas observando das janelas afora, murmurando agitadamente, mas minha visão embaçada os viu apenas como sombras com as caras grudadas nos vidros.
Quando acordei, estava em um leito do Hospital Casa Salvadora. Meu filho estava ao meu lado. Ele sorriu quando me viu abrir os olhos.
— Bem vindo de volta ao mundo dos vivos, senhor Vicente — ele riu com seu tom brincalhão. Sua pele era tão morena quanto de Leonilda. Ele gostava de manter os cabelos negros raspados e um cavanhaque pontudo no queixo. Tinha um corpo bem exercitado, e seus olhos eram os mesmos verdes da mãe. — E aí, viu a mamãe no meio dessa dormideira toda?
Eu ri quando ele perguntou aquilo, não por que achei engraçado, mas por que aquela ideia me deixou imaginativo. Seria eu capaz de rever Leonilda por meio de um sonho? Depois daquilo, comecei a pensar nessa possibilidade todas as noites antes de me deitar. Eu descrevia o rosto de Leonilda nos meus pensamentos até os mínimos detalhes, desde as pintas que ela tinha no pescoço até todas as suas expressões faciais, de raiva, felicidade, tristeza, nojo, surpresa... Como eu adoraria poder revê-la, nem que fosse por meio de uma ilusão da minha própria mente. Será isso possível agora que estou dentro de um mundo desconhecido?
Os dias que passei naquele hospital foram relativamente tranquilos. Dia ou outro eu via algum paciente morrendo, geralmente jovens em acidentes, assaltos ou overdose de drogas em festas clandestinas. Como era triste ver aquilo, e era ainda mais triste ver os pais chorando pela morte dos seus jovens. Meus batimentos cardíacos sempre aceleravam quando via alguém minimamente parecido com Miguel sendo levado para a emergência. Era um pequeno susto atrás do outro.
O pior dia que passei naquele hospital foi quando uma companheira da minha idade, a senhora Laura Ramos, que estava de cama ao meu lado, cometeu suicídio tomando um pote inteiro de comprimidos e morrendo ali, bem na minha frente, caindo dura no chão, com os olhos esbugalhados e a boca entupida de capsulas de comprimidos. Eu gritei para ela parar, gritei para os enfermeiros a deterem, inclusive tentei me levantar para detê-la por conta própria, porém já era tarde demais. Foi doloroso vê-la naquele estado, pois já havia batido bons papos com ela. Senti uma dor semelhante ao dia que perdi Leonilda, não tão devastadora, mas foi o mais próximo que senti de perder alguém especial outra vez.
Mas aquela não foi a última vez que eu fui parar no Hospital Casa Salvadora. Quando fiz setenta e quatro anos, sofri um AVC e acordei de volta em um leito de hospital. Meu filho não estava lá para me ver acordar, ao invés disso estava sua noiva, Albana Dias, uma mulher esbelta, cabelos castanhos, pele alva e mesmos olhos verdes de Miguel.
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Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)
HorrorQuando a vida deixa de importar, torna-se um brinquedo que cai na mão de uma criança. É como segurar o próprio coração nas mãos e apertá-lo, sem saber que a sua vida reside dele. Brincar com a vida também significa afrontar os medos e lutar para sup...