Estou sozinha em casa, como esperado. Terminei de fazer as minhas necessidades no banheiro, mas algo maior eu irei fazer dentro dele: a invocação de um espírito do além. Sempre acreditei nessas coisas desde criancinha, hoje irei comprovar se é realidade.
Olho para o meu celular, que exibe o meu rosto pálido na câmera. Parte do meu cabelo preto esconde um dos meus olhos azulados. Sempre gostei dos meus cabelos pretos, pois representa bem o meu estado atual, apesar de que eles sempre foram dessa cor. Tento sorrir, mas é falso demais para levar a sério. Todos os meus sorrisos ficaram assim desde que os meus pais se separaram. Não tenho razão para vestir uma máscara e me iludir.
Ativo o gravador com um ligeiro toque na tela do celular.
— Oi — forço um sorriso, acenando com a mão livre. — Meu nome é Laurinha Ramos, tenho quatorze anos, e estou aqui para invocar um demônio dentro da minha casa... É, isso mesmo, dessa vez eu criei coragem e vou fazer isso... — abaixo os olhos para os meus pés descalços. Engulo a seco, com a respiração desigual. — Eu... Eu não sei se vai dar certo isso que eu vou fazer... Como vocês já devem saber, meus pais se desentenderam e se separaram... Errr... Hum... — rodo os olhos para os lados, pensando no que mais falar. Volto a olhar o telefone. — Só estou dizendo isso pra vocês não virem me chamar de maluca suicida, tá bom? Eu tenho bons motivos pra estar fazendo isso, tá? — rio histericamente. Volto a ficar séria. Toco o polegar na tela e desligo o gravador. A câmera do telefone continua a mostrar o meu rosto pálido. Estou ofegante e ansiosa. — Eu tenho que fazer isso... — sussurro para mim mesma aos suspiros. — Eu vou... fazer isso...
Abaixo o telefone e guardo no bolso lateral da calça. Em cima da tampa abaixada da privada está a minha boneca, Clarinha, uma bebezinha de cabelo castanho todo arrepiado. Grande parte do seu vestidinho branco foi rasgado e furado com a lâmina de uma tesoura. Um dos olhos está afundado para dentro da cabeça, e um sorrisinho melado com tinta de esmalte vermelho jaz em sua boquinha miúda. Fiz questão de deixá-la a mais medonha possível, caso contrário o ritual não vai ter graça. Tem que ser uma experiência autêntica.
O ritual do pique esconde solitário... Pesquisando na internet, vi os ingredientes necessários para realizá-lo. Primeiro é preciso ter uma boneca com membros humanos: braços, pernas, torso e cabeça. Essa vai ser a Clarinha, minha boneca da infância. Foi um pouco doloroso ter que abrir o seu corpo ao meio para tirar toda a lã fora e enchê-la com arroz cru, um dos procedimentos para fazer o ritual acontecer. Dizem que o arroz atrai os espíritos. Espero que o fato de eu ter comido arroz no almoço não influencie no ritual.
Depois de haver a enchido com grãos de arroz, cortei um pedaço da minha unha e a instaurei no interior da boneca. Isso firmará um vínculo entre mim e a boneca. Então vem a segunda parte: tive que costurar o seu torso aberto usando um fio vermelho, e é preciso que seja vermelho, nenhuma outra cor além do vermelho, pois o vermelho representará os vasos sanguíneos do espírito que possuirá a boneca, fazendo-a se sentir mais viva.
Logo em seguida eu tive que encher a banheira com água. Isso já está feito. A banheira está cheia até a borda. Eu poderia usar a pia, mas o cachorro do vizinho engoliu o tapador do ralo quando veio aqui num domingo. No outro dia, o cachorro amanheceu morto.
A terceira parte é a mais crucial: o esconderijo. Fiquei a tarde inteira vasculhando a casa em busca do esconderijo perfeito. Meu pai, Roberval Ramos, sequer chegou a se queixar o motivo de eu estar dando tantas voltas pela casa. Na verdade, ele ficou dormindo para fazer as suas diversões noturnas: cachaça e sacanagem. As mulheres normalmente se atraem por tipos como ele: alto, porte físico atlético, cabelos pretos, barba por fazer, pele alva e olhos azulados.
Minha mãe, Betina Ramos, também não era santa. Seus ataques de histeria eram difíceis de aturar, e era nessa parte que eu me identificava com o meu pai. Quando criança, eu não me importava nem um pouco com a gritaria em volta da mesa, não, eu simplesmente comia no maior sossego. Pensava que era daquele jeito que eles se amavam, aos berros e xingamentos. Porém, quando fiz oito anos, quando comecei a observar outros casais na rua, um terrível choque de realidade me fez finalmente enxergar que os meus pais nunca chegaram a se amar.
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Rituais - Brincando Com a Vida (Completo)
HorrorQuando a vida deixa de importar, torna-se um brinquedo que cai na mão de uma criança. É como segurar o próprio coração nas mãos e apertá-lo, sem saber que a sua vida reside dele. Brincar com a vida também significa afrontar os medos e lutar para sup...