Capítulo XV - E não é que teve dança country?

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Passei mais tempo naquele quarto do que gostaria. Nunca vinham as mesmas enfermeiras, fisioterapeutas ou médicos... E, mesmo assim, todos estavam a par do que os anteriores haviam feito. Passei a ler, escrever (inclusive partes dessa história) e jogar cartas pra passar o tempo. Conversava com meu irmão todos os dias e com meus outros familiares também. Já me sentia pronta pra voltar, mas ainda assim, não me davam alta... Até que uma hora eu me enchi!

"Eu sou uma espécie de prisioneira aqui?" - questionei o médico da manhã.

Ele olhou para o James e depois para mim, demorando pra soltar um "claro que não! apenas não queremos que a senhora saia e tenha alguma recaída, só isso..."

Assim que ele saiu eu olhei profundamente nos olhos de James: "Sou uma prisioneira sua, então? Seja sincero..."

"Me dá mais uma semana, precisamos ter certeza de que tu não teve contato com nenhuma secreção da criatura, tá? E a próxima Lua cheia vai tirar essa dúvida, sacou?" - as mãos faziam movimentos espalmados, de baixo para cima, pedindo para que eu "baixasse" minha ansiedade...

"Achei que ela fosse "mutante"... Não um lobisomem de verdade, isso é possível?" - levantei a sobrancelha.

"Eu precisei do meu fator de cura pra me livrar dele... Ou do 'berserk', não sei... Só sei que o efeito foi pauleira... E como eu não sei o que aconteceu contigo depois de levar o golpe precisamos nos certificar, ok? Mas 'tamo na etapa final, o pior já passou..." - e sorriu desajeitadamente, ao que parece querendo falar alguma coisa, mas sem conseguir.

Uns dois dias antes da dita Lua cheia James estava muito quieto, rondava o quarto, mas não se sentava no sofá do meu lado, aquele que por mais de um mês ele havia frequentado:

"'tá legal!" - falei em voz alta, quando ele estava quase no umbral para sair - "Chega de fugir, James, pode me dizer o que está te incomodando, vai..."

Ele parou mas não se virou. Demorou alguns minutos para suspirar e girar nos calcanhares, caminhando até o sofá e deixando seu corpo cair pesadamente:

"Tu 'tá certa! Eu preciso dizer uma coisa: eu e a Rosie - e eu já fiz aquela cara de "pelamor..., se for isso eu não quero saber!...", mas não teve jeito - temos um relacionamento complicado, como tu já deve ter percebido... E não adianta fazer essa cara, eu quero... Eu preciso te contar! Tu nunca vai ver a Rosie fisicamente, porque ela foi a minha primeira esposa, lá quando eu tinha 30 e poucos anos e isso faz mais de 100 anos..." - minha cara mudou pra "hein?!" - E, bom... ela foi a única pessoa que eu amei, quero dizer, que eu amo, tu sabe, né, Rosie? - "Claro que sei, meu amor..." - Eu estava quase tendo um nó cerebral quando ele esclareceu: "Parece que existe alguma coisa que persiste ao corpo, tu pode chamar do que quiser... Eu chamo de Rosie... Ela age como se fosse a ruiva, fica comigo nos meus sonhos, me faz muito feliz, sabe?... Mas em todo tempo que eu passo acordado, não 'tô com ela do meu lado, ao mesmo tempo que ela 'tá em mim.." - sua mão direita coça impacientemente sua nuca, tentando ver se algo do que ele dizia fazia sentido. Depois de um tempo parado nessa posição ele volta a olhar para mim: "Eu prometi a mim mesmo que não ia me envolver com mais ninguém. Ver a pessoa que tu ama envelhecendo, ao mesmo tempo que é incrível, é cruel... Tu sabe o que vem a seguir, e a morte nunca é algo fácil de lidar. Qual não foi minha surpresa quando ela apareceu, etérea... Achei que 'tava louco, mas pra provar que ela era real, começou a agir como uma put@ telepata, ajudando tanto a equipe que eu não pude deixar de me apaixonar ainda mais por ela, saca?!"

"Que história linda, James, Rosie! Eu..." - mas fui interrompida por ele.

"Peraí, senão eu não vou conseguir terminar, gata!... E, então, a coisa 'tá complicada porque eu me apaixonei por você também e 'tô me sentindo o maior dos calhordas, apesar da Rosie dar o maior apoio e dizer que eu tenho mais é que ser feliz mesmo! Percebe a minha situação? Eu não sei se 'tô preparado pra passar por tudo de novo, não sei se quero... Mas a maior parte de mim quer muito você!"

Fiquei rubra desde o pescoço, nunca tinha recebido uma declaração dessas, nesse nível e com essa intensidade. Era perceptível a luta interna, sem que eu tivesse nenhuma resposta satisfatória para esse impasse:

"Putz... James... Eu nem sei o que dizer... É claro que os teus desejos encontram eco no meu coração, mas eu não quero que você se culpe a vida toda por ter feito uma opção que uma parte sua não quer. Eu não faço ideia do que seja amar alguém e saber que essa pessoa vai morrer primeiro que você, mas pelo modo como se tratam, dá pra perceber que foi a vida mais linda e plena que a Rosie podia desejar!... Sempre vai ficar a dúvida se comigo poderia ser tão bom quanto, mas eu não tenho essa resposta pra te dar. Eu diria uma frase que meu pai usa muito: "Na dúvida, não faça!" e sei que o tempo será o melhor conselheiro. E isso você tem de sobra: tempo! Sei que é uma coisa que eu não tenho... Mas se serve de consolo, não tenho nenhum pretendente me esperando quando eu voltar. E nenhum num horizonte próximo. Isso te dá alguma vantagem, não?" - essas palavras iam saindo com a função de serem tranquilizantes e libertadoras. Não davam a entender que "vou te esperar a vida inteira", mas davam algum tempo, tempo importante inclusive, para que separados pudéssemos ver o quanto sentíamos dessa distância.

"Eu não quero que tu fique criando expectativas, Li... Eu sou muito bagunçado e não sei se tu merece alguém assim do teu lado..." - essas palavras pareceram estiletes, mas eu aproveitei que ele estava sentado naquele sofá e me sentei na maca, pegando nas mãos dele:

"Sem expectativas, Jim. Eu volto e vou viver minha vida normalmente, você pode ficar sossegado... E aí você vê se ainda continuarei a fazer falta algum tempo depois!" - mandei uma piscadela para ele.

Nos dias seguintes ele continuou vindo, jogamos cartas, dominó, mostrei para ele o que tinha começado a escrever e ele riu da descrição que fiz dele descendo as escadas. Na afamada noite de Lua cheia todos ficaram na expectativa, mas eu nem me abalei. Sabia que não tinha tido nenhum contato com secreções e fui dormir tão logo a equipe de médicos me liberou. Nem podia crer que na manhã seguinte seria uma mulher livre! Não a mesma mulher que iniciou essa história, mas ainda assim, livre! Lá para o meio da madrugada ouvi alguém se sentando no sofázinho e ao abrir os olhos sonolentos me deparei com James... Não o tinha visto o dia todo e, ao aparecer agora, seu semblante parecia cansado, ou era "somente" tristeza?

"Vim te desejar boa viagem, Liura. Sou péssimo com despedidas... O pessoal vai te levar até a casa do teu irmão, viu? Pra que tu vá com um fechamento da história, o John teve que prestar serviços comunitários por 30 dias e começar a frequentar uma psicóloga três vezes por semana, durante um ano, mas eu vou ficar de olho nele... Devolvemos o trailer que tu alugou e já quitamos a dívida, fica tranquila; acho que tu não tem mais nada pendente aqui no Canadá..."

Enquanto ele me dava esse relatório, eu ia me sentando, apoiando as costas no encosto da maca e agradecendo pelos informes, só que na última frase dele eu tive que negar com a cabeça: "Oxi! -soltei no meu mais claro português- Mas claro que eu tenho... Alguém está me devendo uma dança "country", sr. James... Será que não vai cumprir sua palavra?" - e sorri verdadeiramente, queria que ele não ficasse triste com a partida, mas feliz pelas chances que tivemos.

Imitando a voz do rapaz que me convidou pra dançar, estendi a mão direita na direção dele e lancei: "O senhor me daria a honra dessa dança?" - e como quem não estivesse acreditando no que ouvia, ele deixou a cabeça pender para o encosto do sofá enquanto sorria genuinamente; levantou-se, apalpou o bolso de trás e após mexer alguns botões do celular uma música começou a tocar, uma daquelas lentas, do último bar que estivemos: "A honra é toda minha", segurando minha mão. Caminhamos até depois da maca e não sabendo como me abraçar, pela nossa diferença de altura, ele soltou: "Não fica braba comigo..." e correu até um canto onde um item de fisioterapia estava encostado, era uma caixa retangular de madeira, com cerca de 25 centímetros e que o deixava quase da mesma altura que eu: "Ah! Assim tá bem melhor!" e ficamos assim abraçados, até que a música parou de tocar e ele afastou-se do meu corpo, pegando meu rosto com as duas mãos, como quem não quer deixar aquele momento escapar e me beijou numa mescla de ternura e tristeza... Assim que paramos eu só pude dizer em claro português: "Já era hora!" e acariciei a barba dele, sorrindo.

Na manhã ele não veio me ver, Rosie apareceu e me desejou uma viagem excelente, pedindo tranquilidade ao meu coração e a certeza de que tudo se resolveria, como eu mesma havia dito, com o tempo. Senti a leve tontura de quando ela "entrou" a primeira vez na minha aura e desde aquele momento tive certeza de que ela não estaríamos mais compartilhando os pensamentos...

Meu Encontro com o WolverineOnde histórias criam vida. Descubra agora