MAMA

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"Hoje mais do que nunca, quero ser segurado em seus braços [...]
Você será para sempre meu placebo"

HOSEOK

Eu nunca sei quais memórias que tenho sobre minha mãe são reais ou inventadas.
Nas primeiras semanas depois de perdê-la, eu não dormia, chorava a madrugada inteira pedindo para que ela me buscasse. Uma noite, a tia do orfanato sentou ao meu lado na cama, pediu para que eu fechasse os olhos e imaginasse um cenário bonito. Eu imaginei a praia. Ela pediu para que eu descrevesse o que estava acontecendo na praia, quem estava comigo e para onde iríamos, eu me empolguei e queria contar a ela uma história, mas ela não me deixou abrir os olhos. Eu dormi antes que a história terminasse.
Todas as noites eu lhe contava histórias antes de dormir. Em algumas delas, eu era um super-herói que protegia todos do mal, em outras minha mãe me levava ao parque, à escola e cantava para eu dormir. Foi assim que fiz a maior parte de minhas lembranças com a minha mãe.
É doloroso não saber quais delas são reais e é perturbador não poder confiar nas próprias memórias.
Era fim de janeiro, mas o universo havia nos presenteado com o bom tempo. O ano novo lunar é um feriado tradicionalmente familiar, as pessoas costumam passar em casa, preparam comidas tradicionais e curvam-se para os mais velhos em um gesto de respeito e gratidão, por isso era uma surpresa para nós que o arboreto estivesse tão cheio naquele fim de semana. Apesar do tempo perfeito e do grande público, eu não me sinto animado. Depois de toda a preparação e ansiedade dos últimos meses, eu não tenho vontade de subir ao palco.
— Hobi, onde está indo? — treinador Son perguntou ao me ver — Já conferiu a marcação do palco?
— Já conferi sim, eu vou dar uma volta.
— Ah, ok... Só não perca o horário — eu assenti em resposta.
Grass Flower Arboretum é um excelente parque, era o local ideal para aquele tipo de evento. O palco havia sido montado em uma enorme cúpula no centro do parque, aos arredores barracas de comida, brincadeiras e artesanato se posicionavam esperando atender o público entre as apresentações. Todo o parque estava decorado para o ano novo lunar. Algumas apresentações de música tradicional podiam ser ouvidas nas alamedas do parque, crianças com Hanbok brincavam assistidas pelos pais.
Era um dia de festa e eu estava estranhamente melancólico.
— Hyung! — chamou Jungkook em uma barraca de tiro — Vem cá ver isso aqui!
— Hoseok hyung, você tem que tentar uma vez... — Taehyung falou ao lado dele — Eu tenho muitas fichas.
Ele estendeu uma pequena sacola nas mãos.
— Obrigado, Tae, mas não sou bom nisso.
— Taehyung hyung também não... — Jungkook argumentou com a boca cheia de bolinho de peixe de origem duvidosa.
— Eu acertei dois a menos que você, Jungkook...
— Próxima tentativa? — perguntou a atendente impaciente, provavelmente infeliz por trabalhar em pleno ano novo.
— Tá, eu jogo uma... Me dá a ficha, Taehyung.
— Aqui, hyung! O que você vai tentar pegar?
— Aquele flamingo, eu nunca vi um pessoalmente.
— VOCÊS ESTÃO AQUI... Taehyung eu falei pra pegar algumas fichas, não TODAS — O grito de Namjoon me assustou e eu atirei para qualquer lado.
— Puta que pariu, Namjoon!
Taehyung e Jungkook gargalhavam ao meu lado e a atendente me encarava com cara de tédio.
— Joga outra vez, hyung, tem muita ficha aqui...
— Fichas que não são suas, Taehyung — Namjoon tinha os braços cruzados.
— Não, Tae, eu já tenho que voltar de qualquer forma.
— Tudo bem, hyung, vou ganhar esse flamingo pra você!
— Ok, vou esperar, só não deixa Namjoon jogar, não queremos ninguém ferido.
Namjoon revirou os olhos.
Eu os deixei para mais uma caminhada solitária antes de voltar à área do festival, nem meus amigos tinham conseguido melhorar meu humor.
Sentei-me em frente ao lago por alguns momentos. Podia ter visão panorâmica de boa parte do parque, famílias reunidas, grupos de amigos comendo, roupas e máscaras tradicionais por toda parte. Até que meu coração deu um salto.
Uma mulher assistia sozinha à uma apresentação de títeres, eles contavam uma história divertida de uma dinastia antiga. Ela tinha os cabelos pretos cortados na altura dos ombros, tinha uma estatura média, segurava a bolsa no ombro com as mãos como se temesse ser roubada, tinha o nariz bem desenhado e seus olhos formavam pequenas meias-luas quando sorria. Olhá-la era como olhar para um espelho.
Seria impossível reconhecê-la depois de tantos anos, você sequer tem certeza de que se lembra do rosto dela, eu disse a mim mesmo. No entanto, meu coração estava acelerado e meus braços e pernas pareciam ter perdido a força. Tentei atravessar a multidão de pessoas felizes que caminhavam na minha frente.
— Te achei! — Uma mão pegou na minha.
— Que susto, Hyejin! — Eu quase gritei.
— O que está fazendo por aí? Você precisa se trocar, somos os próximos. Sua mão tá gelada! Aconteceu alguma coisa?
— N-não — Olhei na direção dos titereiros, ela não estava mais lá —Eu estava só andando.
Não era ela. Não seria a primeira vez que eu a confundia com alguém, eu deveria estar acostumado a essa altura. Tentei acalmar meu coração e sorri para tranquilizar Hyejin que me olhava desconfiada.
— Vamos — ela me puxou pela mão.
Na área atrás do palco, Sr. Son reuniu todos os dançarinos para dar as últimas orientações e dar algum incentivo. Todos pareciam motivados, até mesmo Jimin, que embora tenha me evitado na última semana, tinha dito o quanto estava nervoso.
Eu vesti o figurino da apresentação solo, sentei em uma cadeira no pequeno camarim compartilhado e assisti a preparação de meus companheiros. O fone em meus ouvidos repetia a música que eu dançaria pela terceira vez. Toda confiança me abandonara, eu só esperava que meu corpo respondesse instintivamente com a memórias dos movimentos exaustivamente ensaiados.
— Hyung? — Jimin me chamou timidamente, eu tirei os fones.
Jimin vestia uma camisa preta larga com um tecido levemente transparente, uma escolha incomum para uma apresentação de dança de rua, mas que de alguma forma combinava muito com ele.
— Eu queria desejar boa sorte e agradecer pelo incentivo. Acho que se não fosse por você, eu teria desistido de me apresentar aqui.
— Obrigado. Não foi nada, Jimin, você teria vindo... E não por mim. Você ama dançar. — Seus olhos me diziam qualquer coisa que eu não sabia interpretar. Jimin estava estranho comigo, quando tudo isso passasse eu falaria com ele.
— Enfim, obrigado, hyung. Você está bem?
— Estou um pouco nervoso, acho que não estou na minha melhor condição...
— Bobagem. Você é o melhor dançarino dessa cidade, hyung, você vai destruir aquele palco.
Eu sorri fraco, queria contar a ele o motivo, mas ele me interrompeu. A sensação que eu tinha era que não me era permitido falhar, ou desanimar, ou desistir.
— Obrigado, Jimin-ah! — disse tentando parecer o mais natural possível — Vamos fazer isso!
— Vamos!
Aos poucos os dançarinos solo foram sendo chamados. Quando Jimin subiu ao palco um R&B melódico tomou as caixas de som, seu corpo seguia cada uma das batidas da música. Seus movimentos eram complexos, mas executados com leveza, era um show de técnica e carisma no palco. Quando a música terminou, a multidão aplaudiu de pé, ele agradeceu com algumas reverências desajeitadas e um sorriso que mal cabia em seu rosto.
— PARABÉNS! — eu o abracei quando ele voltou — Você foi ótimo, Jimin-ah!
— Você viu, hyung? — Seus olhos brilhavam — Você acha que eu fui mesmo bem?
— Você dominou aquele palco — Seu sorriso ficou ainda mais largo.
Meu tom de voz animado, escondia o buraco que havia se transformado meu estômago. Aquele não era um bom dia, desde que eu abri meus olhos, eu tive certeza que algo aconteceria.
— Ei! Você está bem mesmo? — Hyejin me perguntou preocupada, ela já estava vestida e estava ainda mais linda que o normal.
— Uhum — murmurei em resposta.
— Sabe que pode conversar comigo, não sabe? — Eu sorri em resposta.
— Não use minhas frases contra mim.
— Eu preciso ir agora.
— Arrase, você está sexy — ela sorriu e me beijou em resposta.
Não ouvi a reação do público e mal vi quando ela me desejou boa sorte. O apresentador fez uma breve introdução antes de chamar: Smile Hoya. Era o nome que eu usava no palco.
A música começou a tocar, meu corpo seguiu os movimentos mecanicamente enquanto meus olhos procuravam um rosto na multidão a frente. Não estava em lugar nenhum.
Antes do último refrão, eu deveria executar um flip para trás. Eu treinei esse movimento por meses, eu poderia fazê-lo até sem estar devidamente aquecido e preparado. Eu me posicionei e contei mentalmente as batidas da música. Em um segundo, meus olhos acharam o rosto que eu procurava.
A mulher me olhava fixamente.
Pela primeira vez, eu tive medo de pular. Eu podia não ser o mais corajoso dos homens, é verdade que eu tinha pavor de cobras, de altura, de insetos e de zumbis. Mas eu nunca, nunca tive medo de qualquer movimento perigoso em uma coreografia. E esse nem era o movimento mais arriscado que eu já tinha feito.
1, 2, 3.
Eu pulei, e como já esperasse por isso, meu pé escorregou na aterrissagem, fazendo com que eu caísse com a bunda no chão.
"Mãe, você me assistiu falhar."
Eu desejei continuar sentado pateticamente esperando a música acabar, quis abraçar os joelhos e chorar feito uma criança. De vergonha. De medo. De pena de mim mesmo. Mas eu levantei sorrindo, terminei a música e agradeci os aplausos calorosos com um gosto amargo na boca.
— Eu sinto muito... — Hyejin me parou assim que eu entrei no backstage.
— Tudo bem — eu sorri para ela me desvencilhando de um possível abraço.
— Você...
— Vou me trocar para o stage em grupo, é o mais importante, não é?
— Hobi... — ela chamou, mas eu não olhei para trás.
Troquei minhas roupas rapidamente, repeti a mim mesmo que só precisava terminar aquilo.
— Você se machucou, hyung? — Jimin me abordou afobado quando eu amarrava os sapatos.
— Fisicamente, não.
— Hyung, eu...
— Tudo bem, Jimin-ah. Vamos fazer isso! — Ergui a mão e ele correspondeu o high-five em silêncio.
Tive que enfrentar o palco outra vez. Apesar do nervosismo, a presença de meus amigos dentro e fora do palco, tornou tudo mais fácil. Não procurei nenhum rosto na platéia, foquei nas reações exageradas dos meus amigos. Taehyung usava a touca de um jeito ridículo e acenava em todas as oportunidades, como se eu e Jimin pudéssemos responder. Jungkook e Seokjin imitavam a coreografia, enquanto Namjoon e Yoongi riam. Sora, Taeyeon e Hyun-min também estavam lá e ocasionalmente gritavam nossos nomes.
Foi com esse apoio que eu saí do palco com dignidade, ciente de que, embora não tivesse sido o melhor, fiz o que pude.
No final de todas as apresentações, o céu já estava escuro e boa parte do público já tinha ido embora. Os organizadores subiram ao palco para anunciar uma premiação simbólica para os melhores dançarinos do festival. Os premiados foram um garoto de outro grupo no terceiro lugar, Hyejin em segundo e Jimin em primeiro. Jimin não foi capaz de esconder o choque e a felicidade.
Nossos amigos gritaram seu nome, até que o resto da plateia os acompanhassem fazendo coro à sua subida ao placo.
Hyejin era extremamente competitiva, mas não havia nenhum sinal de irritação em seu rosto, ela estava encantada com a reação de Jimin, estendeu a mão para ele para que pudessem subir no palco juntos. Ele a seguiu, aceitando os high-five de outros dançarinos pelo caminho.
Quando o organizador entregou o pequeno troféu a Jimin, seus olhos procuraram os meus, como se estivesse inseguro quanto a minha reação, eu sorri para ele e ele correspondeu aliviado. Eu gostaria de parecer mais animado, demonstrar que não estava nem um pouco incomodado, afinal Jimin era quem mais merecia aquele prêmio. Eu gostaria de me certificar que ele entendesse isso, já que minha aprovação era tão importante para ele, mas no momento não conseguia pensar em nada além da mulher que se parecia com a minha mãe. Onde estava ela? E por que assistiu apenas a minha apresentação?
Eu não queria alimentar falsas esperanças, mas estava falhando.
— Parabéns para os dois melhores dançarinos da cidade! Da Coreia! Do mundo! — falei quando Hyejin e Jimin se aproximaram, me esforçando para parecer comigo mesmo — Precisamos arrumar espaço para ele lá em casa, Jimin-ah.
— Obrigado, hyung, eu estava tremendo que nem um idiota no palco... Podemos colocar... — ele falava animado antes de ser interrompido por Taehyung pulando em suas costas.
— JIMINIE! — todos se reuniram à sua volta, brincando e falando por cima uns dos outros, mas eu já não prestava atenção, porque a mulher estava ali outra vez.
Ela correspondia meu olhar.
Eu não podia estar louco, eu sempre achei que sentiria algo diferente quando visse minha mãe outra vez, algo como instinto. E agora eu podia sentir.
Sem pensar, caminhei até ela, meus olhos não a deixavam por um segundo, eu não podia perdê-la de vista. Se aquela mulher fosse uma desconhecida, provavelmente pensaria que eu era louco. No entanto, ela não se moveu e nem desviou o olhar.
Era ela, era a minha mãe. Eu esperei tanto por isso e, de repente, eu não sabia o que dizer. Eu parei em sua frente com a respiração irregular e ela não disse nada.
— O-olá... — eu me forcei a dizer quando o silêncio ficou desconfortável — Eu vi a senhora do palco... Quer dizer, eu pude ver que estava aproveitando o festival... Eu me pergunto... Como a senhora se chama?
— Olá, Hoseok.
Meu coração parou.
— A senhora... A senhora é...
— Não, eu não sou sua mãe. Eu me chamo Jung Jihee, sou irmã de Hyesook, é um prazer finalmente te conhecer. — Foi como receber um soco no estômago.
— Você é irmã da minha mãe? — Minha mãe nunca falou muito sobre sua família ou sobre sua história em Gwangju, então eu não fazia ideia de que ela poderia ter irmãs.
— Sim, vejo que ela nunca falou a respeito de nós. Somos três irmãs, Hyesook é a mais nova.
— Onde ela está? — Minha voz denunciava desespero.
— Eu não sei, criança, eu não a vejo há pelo menos sete anos.
— Sete anos? — Há sete anos atrás eu tinha dezessete anos e vivia em um orfanato há quase dez. Eu sempre vivi com a esperança de vê-la outra vez, mas de alguma forma saber que ela estava em algum lugar que não fosse minha imaginação há sete anos atrás me deixou inquieto. — Como ela estava? O que estava fazendo?
— Infelizmente eu sei tanto quanto você, Hoseok.
— O que está fazendo aqui?
— Eu soube que você é um dançarino conhecido na região e que se apresentaria aqui hoje, então eu vim na esperança de te conhecer, mas não quis assustá-lo...
— Você... Vocês... Sempre souberam da minha existência? Sua família, quero dizer.
— É complicado, Hoseok — ela suspirou, sua boca se curvou um pouco em uma expressão frustrada. Era estranho olhar para ela, era como se a figura dos meus sonhos se materializasse — Eu esperava que pudéssemos nos encontrar em um lugar mais calmo para que eu te falasse mais a respeito, estarei na cidade até o próximo fim de semana.
— Claro. — Eu me sentia tonto.
— Anote meu número. — Tirei o celular desastradamente do bolso, abri o aplicativo de contatos e estendi para ela — Vamos marcar a melhor data para você. Desculpe incomodá-lo, eu não queria assustá-lo.
— T-tudo bem.
— Você foi muito bem em sua apresentação hoje — ela estendeu o celular para mim com um sorriso cordial — Nos vemos depois.
Parte de mim queria obrigá-la a falar tudo agora, outra parte queria acusá-la. Eu tinha uma família este tempo inteiro que sabia da minha existência e nunca se deu o trabalho de me procurar. Era informação demais para absorver.
Quando Jung Jihee se afastou de mim com um aceno, eu me senti fraco. Forcei minhas pernas a se movimentarem até o local onde meus amigos me esperavam intrigados.
— Quem era aquela, hyung? — algum dos mais novos perguntou.
— Hobi, você está bem? — Yoongi hyung estendeu a mão para mim.
— Hobi, você está pálido. — A voz de Hyejin foi a última coisa que ouvi antes que tudo ficasse escuro.

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