Boy Meets Evil

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HOSEOK

"Meu pecado não foi este ou aquele.
Meu pecado consistia em apertar as mãos com o diabo.
O diabo me segurou em suas garras.
Meu inimigo estava atrás de mim."
(Demian)

— Desculpa, garoto — Jihee tinha a sobrancelha franzida e os olhos carregados de pesar. A verdadeira Jihee.

— Tudo bem — minha voz era apenas um murmúrio.

— Você não quer sentar? — Sua aparência foi se tornando levemente distorcida e sua voz era como um eco distante. Sentar? Eu deveria sentar. Se eu tiver um episódio de narcolepsia na frente dela, ela pode se assustar.

Eu sentei na cadeira que ela apontava.

— Você tem como voltar para casa hoje? — ela perguntou depois de me trazer um copo d'água — Eu odiaria saber que você está sozinho por Gwangju esta noite.

— Eu... Não sei... Eu posso tentar trocar a passagem.

Ela assentiu.

Jihee era uma mulher de baixa estatura, um pouquinho rechonchuda, de cabelos ainda mais curtos que os meus e voz ríspida, que fazia parecer que ela estava sempre mal humorada. Era a mais velha das irmãs Jung. Foi essa mulher que eu encontrei depois de perambular por Gwangju em busca do endereço que a "outra" Jihee havia me dado.

— Ela é perigosa, garoto — ela havia dito quando expliquei que recebi o endereço de alguém que se passava por ela e dizia ter informações sobre a minha mãe — Definitivamente, louca. Eu sempre soube que ela era maluca, mas nunca imaginei que chegaria nesse ponto. Imagina, usar meu nome, te contar uma mentira dessas. Eu sinto muito, garoto, mas sua mãe é doente.

Então o tempo parou num instante.

Como numa cena de filme alternativo, sem trilha sonora, só o silêncio. A carranca de Jihee continuava a falar, mas eu não ouvia porque o mundo não tinha som. Eu puxei o ar para dentro. Incapaz de compreender o que ela me dizia com tanta naturalidade e indignação.

Era a minha mãe mesmo. Eu a vi, eu falei com ela, ela me tocou e sorriu para mim. Ela me viu dançar, depois ela almoçou comigo e contou histórias. Ela tinha o sotaque forte de Jeolla. O canto dos seus olhos formavam pequenas rugas quando ela sorria, como dois pequenos peixes. Exatamente como os meus. Ela era linda, mais linda que qualquer fantasia que eu já tinha criado, mais ainda porque era real e tinha a marca dos anos em sua expressão.

E ela mentiu com a naturalidade de quem acredita na própria mentira. Ela se passou por outra pessoa, contou histórias sobre lugares que não existiam, disse que minha mãe me amava e me abandonou porque estava sozinha, disse que minha mãe precisava de ajuda.

Que tipo de pessoa faz isso com o próprio filho?

Eu voltei à realidade quando Jihee me sacudiu o braço. Eu estava respirando com dificuldade, por um momento tinha esquecido onde estava e com quem estava. Era o meio da tarde de sexta, eu estava na casa de uma pessoa desconhecida em uma cidade distante. Meu coração apertou em desespero. Eu estava longe de casa. Eu estava sozinho. Ainda mais do que já estive antes. Porque eu tinha uma mãe, em algum lugar, mas pela primeira vez eu não queria vê-la.

Jihee continuou a falar e eu me esforcei para prestar atenção, ainda que quisesse sair correndo pela porta.

— Hyesook foi diagnosticada com Transtorno de Bipolaridade aos dezesseis anos. Nós sempre soubemos que tinha algo errado com ela, mas nossos pais não tinham conhecimento, achavam que ela era só instável e mentirosa. Verdade seja dita, eu achava também. Quando as coisa ficaram muito sérias, Hyesook se machucou muito em um dos episódios depressivos. Nosso pai a levou até o médico, pediu que desse qualquer remédio para que ela ficasse mansa.. Eu lembro que foi exatamente esta a palavra que ele usou. Então o médico encaminhou minha irmã para o psiquiatra.

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