Interlude_Dream, Reality

13 1 0
                                    

"Fingindo não ser solitário, fingindo não estar sofrendo
Incompreensívelmente fingindo ser forte"
140503 at dawn - Agust D

YOONGI

A luz do dia invadia a sala por uma pequena fresta na janela incidindo exatamente em meus olhos.
Minha cabeça pesava, eu tentei a todo custo ignorar a claridade e continuar dormindo. Impossível, era realmente irritante. Instintivamente me mexi para fugir da claridade e cada músculo reclamou a noite imóvel e desconfortável. Em cima de mim um peso e um ressonar conhecidos. Sora.
Custei a me lembrar da noite anterior e do motivo dela ter acabado em cima de mim outra vez.
Estamos vestidos, é um bom sinal.
O ronco característico de Namjoon preencheu meus ouvidos, movi a cabeça para olhar ao redor e reconheci a sala de Taehyung. As memórias da noite anterior voltaram aos poucos.
Sora se mexeu em cima de mim, resmungando e esfregando os olhos.
— Que horas são? — perguntou com a voz rouca de sono.
Estiquei o pulso dormente embaixo dela para ver as horas.
— 10h30 — bocejei.
— Meu Deus. Parece que eu vou morrer... — ela disse, levantando-se. Quase ouvi os músculos da minha coxa gritarem de alívio — Minha cabeça tá explodindo.
Minha cabeça também doía, mas já tive ressacas piores. Meu corpo estava adaptado.
Sora caminhou sofregamente até o banheiro, enquanto eu pensava se valeria a pena me forçar a ficar mesma posição por mais tempo e dormir mais ou se deveria levantar de vez.
Ainda não tinha chegado a conclusão nenhuma quando Sora voltou.
— A gente não fez nenhuma merda, né?
— Se você chama transar de merda, não, não fizemos — respondi encarando a claridade estúpida que saia pela janela, desejando que a cortina se fechasse com a força do ódio.
— Hm. Bom.
— Como se nunca tivesse acontecido antes...
— Não na casa de um dos nossos amigos... Argh! Que ressaca horrível.
— Você deveria dormir mais, tá cedo ainda — disse me sentando no sofá, oferecendo espaço para ela
— Não quero dormir, quero morrer. Olha essa zona!
Passei os olhos pela sala e cozinhas imundas.
— Sério que você quer fazer isso agora?
— Querer eu quero morrer, mas alguém precisa começar. Você pode dormir mais.
— Só pra quando a Taeyeon acordar você dizer que fez tudo sozinha e ficar com o mérito.
— Que mérito, garoto? Vai dormir.
— Por que mais alguém quer limpar a casa essa hora da manhã de ressaca? — ela ignorou minha pergunta e saiu em direção à cozinha.
Eu permaneci no sofá, até deitei, mas a luz continuava exatamente na minha cara. Depois de alguns minutos e alguns xingamentos, vi a mim mesmo recolhendo o lixo, os copos sujos, pratos e talheres espalhados pela sala.
— Boa tentativa de dividir o mérito — Sora fez questão de dizer quando eu a levei a louça que recolhi e eu resmunguei em resposta.
Aos poucos, os habitantes da casa foram se levantando, um a um como zumbis sem expressão.
Todos ajudaram e antes do meio-dia a casa estava milagrosamente limpa.
Apesar do convite para ficar, fui embora cedo. Não me lembrava qual a última vez que tinha estado em casa.
Abri a porta velha e emperrada com alguma dificuldade, meu pai estava sentado em frente à TV comendo lámen com aspecto de quem não troca de roupas por pelo menos uma semana. Em cima do aparador, no canto da sala, estava a orquídea que minha avó deixou para "alegrar o ambiente", a flor murcha apodrecia lentamente, trazendo a mórbida sensação de que nada naquele ambiente estava realmente vivo.
Passei por meu pai sem lhe dirigir a palavra e ele, por sua vez, fingiu não me ver, subi as escadas e me tranquei em meu quarto.
Meu pai não se dirigia a mim a não ser que tivesse algo realmente importante para me dizer. Depois de tantos conflitos, chegamos a um acordo mútuo de que era melhor ignorar a presença um do outro, sem questionar os modos destrutivos da vida de cada um. Se ele queria viver com pena de si mesmo, esse não era um problema meu. Assim como o que eu faço da minha vida também não lhe diz respeito. Eu pagava parte das contas da casa, comprava o que eu comia, então ele não tinha por que me questionar.
Depois da morte de minha mãe, ele tentou por pouco tempo agir como pai, tentou me punir por ser expulso da escola, tentou controlar meus hábitos e vícios, mas eu não facilitei, passei minha adolescência desafiando ou fugindo do meu pai. Quando eu sofri queimaduras por ter ateado fogo num quarto de hotel, ele me visitou no hospital, mas não disse uma palavra. Em algum momento ele desistiu de tentar e era melhor assim.
Aproveitei o tempo livre até meu turno no trabalho para dormir e recuperar meu corpo da noite desconfortável.
Dormi um sono leve e agitado, meu pensamentos e sonhos se confundiam bagunçando a minha percepção da realidade. Em algum momento eu estava caminhando pela sala de estar da casa de minha infância, simples, mas limpa e bem arrumada. Até mesmo os móveis pareciam ter cores mais vívidas. De costas para mim, junto ao piano, estava a silhueta de minha mãe, exatamente como eu me lembrava. Quando criança, eu passava horas ouvindo-a tocar.
"Yoongi-ah" ela me chamava "Sente-se aqui, querido, tenho algo novo para lhe mostrar."
Eu me sentava no banco ao seu lado, meus pés balançavam no ar por não alcançarem o chão. Então ela tocava algo maravilhoso e alguma coisa parecia se agitar dentro de mim.
"Você gostou?" eu fazia que sim com a cabeça.
"Eu fiz para você" ela dizia sorrindo, bagunçando meus cabelos.
Mas eu não era mais criança. Meu eu adulto a olhava, sentindo as lágrimas quentes se acumularem nos olhos, lutando para não derramá-las.
"Você gostou?" fiz que sim com a cabeça, agora eu era um palmo mais alto que ela.
O piano a nossa frente ardia em chamas. Ela não parecia se importar, sorria o mesmo sorriso de minhas lembranças, mas carregava uma atmosfera diferente, etérea, atemporal.
"Eu fiz para você"
"Mãe..." eu a chamava baixo, tentando alertá-la.
O fogo tomava a sala inteira, respirar ficava cada vez mais difícil, a garganta seca ardia e os olhos já não seguravam as lágrimas.
Parte de mim sabia que não adiantava fugir, o fogo consumiria nós dois, havia conforto nessa ideia. Por outro lado, o que restava do menino que fui, queria gritar e tirá-la dali. Queria salvar minha mãe para que ela tocasse para mim para sempre.
Eu me levantei do banco, as lágrimas escorriam pelo meu rosto e eu assistia o fogo queimá-la enquanto ela tocava piano, como se nada tivesse acontecendo.
Ela virou-se para mim uma última vez.
"Você gostou?" seu rosto derretia como cera, sua expressão retorcida como um demônio assustador e sorridente "Você gostou, Yoongi-ah?"
Levantei num pulo. Meu corpo parecia ferver, o suor escorria pelo meu rosto, mesmo que uma corrente de ar frio invadisse o quarto escuro pela janela.
O relógio mostrava 19h15, eu deveria estar no trabalho às 20h.
Encarei o vazio por alguns momentos tentando normalizar a respiração. A imagem estava gravada em meu cérebro, corrompendo uma de minhas lembranças mais queridas. Praguejei baixinho e me levantei para tomar banho.
Em dez minutos eu estava pronto. O espelho mostrava uma figura mais pálida que o normal, o cabelo cinza castigado pelas inúmeras colorações não ajudava na aparência geral. Sorri para o espelho tentando parecer mais saudável, a expressão do demônio retorcido pareceu refletir minha própria imagem.
Peguei as chaves e a carteira; virei o restante da garrafa de whisky barato deixado estrategicamente embaixo da cama antes de sair. Era o último dia do ano, mas para mim era como qualquer outro.

youth.Onde histórias criam vida. Descubra agora