First Love

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"Do meu nascimento ao fim da minha vida,
você é aquele que me assistirá.
Nos cantos da minha memória,
Um piano marrom repousa."

YOONGI

A água quente lavou a tinta escura por todo o meu corpo. No piso branco formou-se uma poça de água preta e sabão.
Desliguei o chuveiro. Limpei o espelho embaçado com as mãos, o reflexo exibiu um rosto vermelho com cabelos pretos colados na testa, por onde escorriam gotículas de água. Depois de passar pelo vermelho, rosa, verde e cinza, meu cabelo finalmente voltava a cor original. Era como encarar meu eu de 19 anos no espelho.
— Estranho — murmurei para o reflexo.
Fui até o armário no quarto. Meus cabides eram divididos em roupas que eu uso todos os dias, as que eu já usei todos os dias e as que eu nunca uso. Entre as peças esquecidas, estava um antigo sobretudo de linho que pertenceu ao meu pai. O tipo de roupa que ele deve ter pago uma fortuna no passado – por motivos que eu desconheço, já que ele mal sai de casa. Uma das raras peças a sobreviver ao incêndio.
Em algum momento, por motivos que também desconheço, o casaco veio parar em meu armário. Eu nunca havia usado. A peça cheirava a mofo, eu torci o nariz jogando na cama.
Vesti calças jeans escuras e uma camisa preta de botões, a única peça de roupa social disponível no guarda-roupas. Olhei no espelho novamente, o cabelo preto escorrido na testa combinados à minha palidez habitual e à roupa preta me faziam parecer um adolescente gótico. Eu franzi o nariz para o reflexo.
Depois de gastar o vidro quase inteiro de desodorante no casaco, vesti-o na esperança de melhorar a aparência geral. Passei de vocalista de banda emo para aposentado e pensionista em dois segundos.
Recolhi a pasta preta e os óculos de grau que eu nunca usava, dei a última olhadela no espelho. Eu quase parecia um professor.
Eu atravessei a cidade de trem, em seguida tomei um ônibus me deixou em uma avenida ladeada de grandes muros que protegiam condomínios de luxo. O bairro afastado abrigava as mansões que os bairros centrais não conseguiam comportar.
Um grande outdoor no muro externo do condomínio elegante exibia uma família sorridente sob a frase "Songju é qualidade de vida". Do outro lado da margem do rio imundo que cortava Songju, centenas de famílias amontoavam-se em casinhas irregulares na várzea do rio.
Segui a direção que indicava o aplicativo, contornei o muro do condomínio até uma rua cercada por mansões. Nenhuma alma à vista.
As fachadas eram largas e espaçadas, dando a sensação de que a rua nunca teria fim. No topo da pequena colina que formava a rua bem arborizada, estava a casa que eu procurava.
Toquei o interfone.
— Residência dos Byun — uma voz metálica respondeu.
— Olá, hm... Aqui é Min Yoongi.
Alguém atendeu do outro lado.
— Boa tarde, Min Yoongi-ssi, vou pedir que olhe para a câmera à sua direita — Eu me virei para a câmera.
— Certo, muito obrigada, aguarde um minuto, por favor, e irei recebê-lo. — A trava do grande portão de madeira soltou, eu entrei em um corredor curto bem iluminado fechado por outra porta ainda mais elegante. Quando eu fechei o primeiro portão, o segundo abriu à minha frente.
Uma mulher de meia idade vestida em um uniforme preto vinha ao meu encontro.
— Olá, Yoongi-ssi, sou Chungsook. É um prazer recebê-lo. — ela se curvou um pouco.
— Olá, obrigado.
— Venha, Heuning-kai está aguardando na sala — ela me direcionou pelo caminho de pedra do belo jardim, que terminava na fachada de uma grande casa, saída diretamente dos sonhos de um grande arquiteto — Ah, é uma pena a senhora Byun não poder recebê-lo pessoalmente, ela está no exterior a trabalho, mas pediu que eu o orientasse. Ela está muito satisfeita em ter achado você. Professores de piano tão qualificados na sua idade são realmente difíceis de achar nos dias de hoje... Entre, por favor.
Chegamos ao hall de entrada da casa bem decorada.
— A senhora comentou que o garoto me aguarda, mas a senhora Byun havia me informado que eram dois.
— Ah sim, são gêmeos, no entanto, ela preferiu dividir as aulas para não sobrecarregá-lo. Você vai começar pelo menino, ele é mais difícil. — Ela parou por um momento.
— Imagine que a senhora Byun já teve nesta casa professores notáveis, o último lecionava em Berlim, mas não teve jeito. Ninguém fica muito tempo. Pensamos então que alguém mais próximo de sua idade encontraria menos resistência. Um jovem de 25 anos como você, ex-aluno da Universidade de Artes em Daegu com dois anos de experiência em aulas particulares, era tudo o que a senhora Byun procurava. — Eu sorri amarelo, nunca tinha pisado em Daegu e nem em uma universidade. — Venha, ele está aqui.
Ela abriu caminho por um corredor largo iluminado por gigantescas janelas de vidro.
— Heuning-kai-ssi, o professor chegou.
O garoto estava esparramado no grande sofá, tinha os olhos na tela do celular, onde teclava preguiçosamente.
— Boa tarde — eu cumprimentei, mas o garoto não desgrudou os olhos da tela.
— Querido, Yoongi-ssi o cumprimentou...
— Não tem nada pra fazer na cozinha, não, Chungsook? — ele falou como se comentasse o tempo lá fora.
Chungsook sorriu sem graça e se curvou uma vez antes de deixar a sala.
— Devemos começar? — ele ignorou meu comentário outra vez.
Era uma piada do destino.
Quatro horas por semana com dois adolescentes mimados, no entanto, me renderiam mais que um mês trabalhado no Dionysus.
— Você gosta de música, Heuning-Kai?
— Tanto faz — ele respondeu olhando para o celular.
— O que te levou a querer aprender piano, então?
— Eu não dou a mínima pra essa velharia.
Um pesadelo saído de um filme clichê adolescente.
Ele continuou mexendo no celular, parecendo achar graça da minha falta de expressão parado ao seu lado, então deixei a pasta em cima do grande sofá e fui dar uma olhada no piano.
O que ele chamou de velharia era um Steinway & Sons, piano tocado por grandes mestres da música em concertos no mundo inteiro. Cada exemplar deste demora pelo menos um ano para ser produzido, em contraste com os vinte dias que marcas que produzem grande escala levam. No canto, a assinatura de Lang Lang.
Como uma criança diante de um brinquedo inimaginável, eu me sentei no banco de couro em frente a um dos pianos mais raros do mundo. Meus dedos tocaram levemente as teclas frias sem emitirem som. Como eu poderia violar um instrumento como aquele? Contudo, era impossível calar a excitação que crescia dentro de mim.
Que tipo de som um piano daquele faria?
O mindinho involuntariamente tocou uma das teclas marfim, causando um rebuliço em meu estômago. "É bom te ver de novo", era como se o piano dissesse. Muito embora, o som que suas teclas emitiram fossem muito diferentes daquelas que ouvia quando meus dedos tocavam as familiares teclas do piano marrom de minha infância. Nada soava como ele, nem um Steinway & Sons. Nem eu jamais soaria como minha mãe.
Meus dedos deslizaram pelas teclas por vontade própria, uma melodia familiar era ouvida. A música que morava em minha cabeça. Toquei instintivamente, nunca havia escrito partituras para essa melodia, ela só existia quando meus dedos encontravam um piano. A melodia foi subitamente interrompida, não havia nada além daquilo, era um pequeno trecho que se repetia infinitamente. Eu nunca cheguei a terminá-la.
O garoto ria para o celular, eu girei o corpo para olhá-lo. Ele estava me filmando?
Eu me levantei, caminhei lentamente até ele e arranquei o celular de suas mãos.
— Ei... Ficou louco? Devolve meu celular.
— Escuta aqui, garoto — ele tentou puxar o celular, que minha mão prendia ao sofá com firmeza. Eu me abaixei até ficar na altura de seus olhos — Você não está feliz de ser obrigado a tocar piano, eu também não estou feliz de atravessar a cidade pra tocar pra moleque mimado. Então, é o seguinte, você me ajuda e eu te ajudo. Larga esse celular, senta naquela cadeira, eu te ensino três notas e eu digo pra tua mãe que a aula foi um sucesso.
— Ha ha ha, essa é boa. Que tal essa? Eu digo pra minha mãe que você é um lunático que entrou na minha casa pra roubar meu celular e tocar meu piano sozinho. E nunca mais você vai botar seus pés sujos nessa casa.
Seus olhos foram da lama no canto dos meus sapatos, até o fundo dos meus olhos. Havia divertimento na ideia de provocar alguém até perder o emprego, ele era só um garoto estúpido, mas sabia quem detinha o poder naquela situação.
— Tanto faz. — eu o imitei. Peguei o celular na mão para devolvê-lo, acidentalmente vendo a música pausada na barra de notificações. Post Malone.
— Você gosta de rap. — Não era uma pergunta.
— Hm? Gosto.
Eu ri baixo, pegando minhas coisas em cima do sofá, ciente de que agora sua atenção estava em mim.
— Ué, qual é a da risadinha? Eu quero ser rapper.
— Você? — eu perguntei carregado de ironia — Um garoto como você jamais conseguiria.
Eu me direcionava para a saída.
— E o que VOCÊ sabe sobre rap, Beethoven?
Eu me virei para ele.
— Qual seu rapper preferido?
— Eminem — eu ri mais alto, consciente das bochechas vermelhas do garoto. Na verdade, eu esperava essa resposta, The Eminem Show foi o primeiro álbum de rap que eu ouvi na vida.
— Qual o problema?
— Notorious B.I.G, N.W.A., Tupac?
Ele continuou me encarando em silêncio.
— Não? Tchau, garoto. Foi um prazer tocar o seu piano.

Deixei a mansão no fim da tarde. O bairro elegante anoitecia em um silêncio imperturbável, como se uma bolha o separasse do caos das seis da tarde do restante da cidade.
Eu provavelmente não pisaria naquela casa outra vez, corri este risco quando fui ríspido com o garoto. Eu estava de volta à estaca zero do desemprego, mas não tinha arrependimento. Eu procuraria emprego em escolas de músicas, talvez não fosse tão difícil com o meu currículo de mentira.
Não me restavam muitas opções depois de ser demitido. Enviei alguns currículos para bartender nos bares da região, mas as notícias correm rápido e eles não contratariam alguém que causou problemas. A música foi a outra alternativa, já que eu não sabia fazer outra coisa.
A música era como outra linguagem para mim. Eu era fluente desde criança, isso não significava, no entanto, que eu era necessariamente bom. Não era um sonho, nem um desejo, só era natural. Eu toquei piano antes mesmo de saber o que eram notas. Minha mãe era uma musicista que desistiu da carreira em prol do casamento e do filho, portanto eu era o aluno que ela nunca teve.
Quando a música de minha mãe foi silenciada, eu decidi que nenhuma música valia a pena ser ouvida e prometi não voltar a tocar piano. Eu não pude cumprir.
De uma maneira ou de outra, eu voltava para o piano. A única língua que eu compreendia inteiramente. Agora, não por opção, eu recorria ao piano novamente. Ele me receberia outra vez?
Eu caminhei na margem do rio de Songju até o ponto de ônibus, o contraste da cidade me deixou melancólico. O rio poluído traçava uma linha intransponível entre realidades que coexistiam, mas nunca se misturavam. A elite se escondia atrás de enormes muros, câmeras de segurança e portões duplos, que deixavam de fora uma realidade feia que empobreceria suas vidas felizes. Do outro lado, a população brigava por um pedaço de terra na lama de um rio podre.
"Songju é qualidade de vida"
Pensei no garoto e na arrogância com que ele falou dos meus pés. Pensei em Baekhyun drogado no Dionysus, o primogênito da prestigiada família Byun. Não importa quantas vezes ele arruine sua própria vida, não há nada que o dinheiro e a influência de sua família não conserte.
Para puta que pariu esta família e este bairro de hipócritas.
Entrei no ônibus em direção ao meu bairro, sentei no banco traseiro, de repente uma ansiedade estranha me tomou. O silêncio do meu quarto vazio, a casa meio morta, a solidão de não ter nada e a ansiedade de começar de novo. Peguei o celular na mão, rolei os dedos nervosos pelas últimas mensagens.
Jungkook tinha me desejado sorte na primeira aula e pedia para que eu mandasse notícias, o grupo de nós sete estava silencioso, a última mensagem era de dois dias atrás, Taehyung havia perguntado se Hoseok estava bem. Ninguém respondeu. A conversa com Sora não tinha mensagens novas.
Fechei o aplicativo de mensagens e abri o bloco de notas. Uma confusão de pequenos textos endereçados a ninguém. Abri uma nota em branco. Havia um mundo de coisas que eu queria dizer, não particularmente a ninguém.

"Eu lembro daquele momento
Muito maior que minha altura
O piano marrom que me guiou
Eu olhei para você, eu ansiei você
Quando o toquei com os dedos pequenos."

Li e reli o verso. Achei bom, depois achei pedante. Depois resolvi não achar nada, eu estava só dizendo o que queria dizer.
Num devaneio que eu não pude controlar, imaginei minha vida como descrita no meu currículo.
Imaginei a mim mesmo a caminho de Daegu, morando em um loteamento para estudantes, aprendendo música, recebendo a visita de minha mãe, mostrando o campus para ela. Imaginei o brilho em seus olhos ao entrar em uma sala de concerto. Eu diria a ela que ela poderia voltar, poderia dar aulas em uma universidade se quisesse. Ela diria que não, mas voltaria para casa pensando a respeito.
Demoraria algum tempo. Ela enviaria currículos em segredo, faria algumas entrevistas até ser aceita por ser musicista brilhante que era. Ela ligaria para me contar.
Meu pai seria alguém melhor? Ele saberia lidar com a liberdade dela em perseguir um sonho, ainda que tardiamente? Se não tivesse a perdido, ele saberia seu valor? Saberia que ele roubou o pouco tempo que ela tinha para satisfazer suas vontades machistas e egoístas.
Eu odiei meu devaneio, odiei a felicidade que eu não tive. O currículo era só um pedaço de papel, um amontoado de palavras vazias, mas que de alguma forma me agregavam valor. Um valor mentiroso.
O celular vibrou na minha mão, era Sora perguntando a respeito do emprego, eu abri a conversa para respondê-la que não tinha dado certo. O celular vibrou outra vez.

Senhora Byun:
"Yoongi-ssi, muito obrigada por hoje, você impressionou o meu filho. Estou contente com a empolgação dele com a música. Retorno para a Coreia amanhã, vamos acertar os detalhes das aulas quando eu chegar.
Bom descanso."

"E aí?" Sora perguntou depois de perceber que eu havia digitado e apagado.
"Eu acho que tenho um emprego." Digitei, bloqueando o celular antes de ver a resposta.
Fiz uma rápida lista mental dos álbuns de rap que poderia levar para mantar o garoto quieto e interessado. Olhei para a janela, sem poder evitar sorrir um pouco.

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