CAPÍTULO 1

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     Já eram onze da noite quando Júlia desceu do ônibus e começou a caminhar na direção de casa. Suspirou enquanto ouvia o ronco do motor se afastando. Era perto, mas por ser um bairro estritamente residencial, estava tudo deserto àquela hora, e isso sempre fazia o medo revirar seu estômago. Lembrou das estatísticas de mulheres atacadas, violência, estupro, morte – "Péssima hora para pensar nisso, Júlia" – se repreendeu mentalmente. Ajeitou a alça da bolsa no ombro, segurando com força a pasta onde guardava o material da faculdade, naquele momento de apreensão ter um objeto entre seus dedos era como ter uma tábua de salvação - se estivesse à deriva no mar e não na sua rua quieta e cheia de sombras – pensou com certa ironia e continuou andando apressada. Enquanto vencia a distância, passeava o olhar pelos quintais gramados dos vizinhos, era um lugar bonito durante o dia, um bom bairro de classe média na região metropolitana de Curitiba, e relativamente seguro. Mas a escuridão da noite deixava tudo muito assustador e aquelas sombras parece até que se mexiam e... –

 AAAhhhhh – gritou a plenos pulmões quando um gato preto pulou na sua frente, saindo de uma árvore e correndo sumiu em um quintal escuro do outro lado da rua. Sentiu todos os pelos do corpo se eriçarem, as mãos gelaram e os pés formigaram, ficando congelada no mesmo lugar e tentando controlar a respiração e acalmar o coração, que parecia que iria explodir dando pancadas de encontro ao seu peito. Com o seu grito, todos os cães do mundo começaram a latir e algumas luzes se acenderam. Levou ainda uns segundos, mas conseguiu se mexer e continuou andando, seguia quase numa marcha atlética, o coração ainda aos saltos com o susto e agora pelo esforço da caminhada rápida. Precisa estar em casa logo. Gostava de chegar mais cedo, e em geral sempre conseguia. Mas não hoje. Não, porque fora estúpida o suficiente para esperar o Gustavo ir buscá-la na faculdade e por isso tivera que pegar o último ônibus. Ele tinha sido seu namorado, ou algo assim, pelos últimos seis meses e o relacionamento acabara quando Julia deu um tremendo flagra, pegando-o no maior amasso com uma colega dele de faculdade num barzinho em frente ao campus. Isso foi na terça. E hoje, sexta-feira, depois de muita insistência dele, ela concordara em conversar. Mas o Gustavo, provando mais uma vez ser o idiota que era, não apareceu. Não se lamentava por ele não ter aparecido, já ensaiava o término há um tempo, a traição foi apenas pretexto. Ele tentara ligar várias vezes, mas estava chateada demais para atender e se recusou a olhar as mensagens. Certo, talvez tivesse agido com um pouco de infantilidade, mas quando ela seria prioridade para o Gustavo? Quando seria a prioridade de alguém? Estava tentando agora ser a própria prioridade e bem cheia de ouvir desculpas. Gustavo era imaturo, dera mostras mais de uma vez, mas ela foi deixando a coisa toda rolar e agora estavam nesse momento. A constatação só a fazia pensar novamente em como tinha se envolvido com alguém assim, tão completamente diferente dela em tantos aspectos. Lembrou de como ele se mostrou diferente no começo, com flores, bilhetes e surpresas em dias comuns, teria até se apaixonado, se pudesse. Mas não podia, não conseguia, nem confiar, nem se entregar e no fim tinha razão: o verdadeiro Gustavo apareceu e a realidade dura nem teve mais a capacidade de chocá-la. Ficara mais de um ano sozinha, curtindo seu luto e quando resolvera se envolver com alguém, escolhera tão errado como sempre. Optara pelo diferente, queria o diferente. Mas o diferente só existe em nossa mente, o ser humano é sempre tão previsível e igual – filosofava, enquanto ouvia o toc-toc solitário dos seus sapatos ecoando pela noite.

     Júlia, como tantos jovens da sua idade, fazia faculdade à noite e trabalhava o dia todo. Era estagiária em uma grande firma de advocacia, a Martins & Peres, empresa bem famosa na região sul do país. Na verdade, era mais do que estagiária, ela já era assessora do dr. Milton Martins, um dos sócios e por mais de uma vez ele já havia dito que ela seria contratada como advogada na empresa assim que terminasse a faculdade de direito e fosse aprovada no exame da Ordem. Faltavam apenas quatro meses para concluir seu curso e o exame seria dali a um mês. E o exame era tão importante quanto concluir o curso. Afinal, não poderia exercer a profissão se não fosse registrada. A pressão sobre si mesma estava grande nestes últimos meses. Tinha muito o que estudar no fim de semana, ocupar sua mente, o que era ótimo, nem teria tempo de ficar brava com o Gustavo e o papelão dele.

     Finalmente chegando em casa, destrancou a porta e levando a mão ao interruptor só pensava em tomar um banho morno e cair na cama. Teve seus pensamentos interrompidos ao perceber que a lâmpada não acendia. - Por favor Deus, que seja apenas uma lâmpada queimada - testou outra, nada. Abriu a geladeira e nada daquela luzinha para iluminar esse fim de sexta-feira tenebroso. Suspirou resignada, apoiando o queixo na porta da geladeira, olhando a escuridão da casa, quebrada apenas pela pouca luz que chegava do poste na rua, pensando nas possibilidades e já desconfiando do motivo de estar no escuro. Naquela semana dera dinheiro à sua irmã, Manu, para que ela pagasse a conta de energia. Devido à correria com as provas, final do semestre e trabalho, tinha deixado de pagar na data e por isso agora o pagamento só poderia ser feito em uma agência da companhia elétrica. E a casa estava no escuro. - É só ligar os pontos, Júlia – pensou com ironia. Com certeza a irmã não pagara a bendita conta e agora estavam sem eletricidade, justamente no final de semana.

     Manuela, a irmã caçula, cinco anos mais nova do que ela, era sua única família. Ainda estava no ensino médio e não tinha um trabalho fixo, fazia serviços de babá para uns vizinhos, o que a deixava com mais tempo livre. Por isso pedira para ela ir pagar a tal conta. Fechou os olhos e controlou a vontade de gritar de frustração. De nada adiantaria alimentar a raiva agora, amanhã conversaria com a irmã, com certeza ela teria uma explicação razoável para isso.

E como os planos para um gostoso banho morno não seriam concretizados, o jeito seria enfrentar o chuveiro frio. E ela detestava banho frio, ainda mais àquela hora da noite. Tomou uma ducha rápida e se enfiou entre os lençóis. Precisava dormir. A semana tinha sido complicada. O dia terminara complicado e nada como uma boa noite de sono para reestabelecer a ordem das coisas e colocar seu mundo nos eixos novamente, girando organizadamente, conforme o plano.

A Lei do Amor (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora