Capítulo 19

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Desde que tudo acontecera, era a primeira vez que Júlia falava tão abertamente sobre o assunto. Aquilo trouxe todo o sofrimento de volta. Ela havia guardado todos aqueles acontecimentos em um cantinho da mente e vivia como que anestesiada. Não se permitira sofrer na época e agora toda a dor vinha em ondas destruidoras, trazendo das suas lembranças os mais vívidos detalhes. Fora exaustivo esconder, mas lembrar tudo agora estava sendo muito doloroso. Era pior ainda do que em seus pesadelos, pois ali ela não tinha como simplesmente acordar e deixar o pavor para trás. Não, ali naqueles momentos, teve que reviver todo o medo e a dor daquele dia. Toda a sua energia parecia ter desaparecido, sentia-se pequena e quebrada. Não sabia se um dia teria conserto.

Seu corpo foi se acalmando aos poucos, o choro convulsivo dando lugar a um pranto baixinho, permeado por pequenos soluços. Agora apenas suspirava, de quando em quando, a cabeça pesada, os olhos ardendo. Ambos estavam sentados no sofá. André a abraçava, falando baixinho palavras de consolo, enquanto ela repousava a cabeça sobre os ombros dele. Era bom senti-lo ali naquele momento. Apesar das lembranças dolorosas, apesar da mágoa que carregava em seu coração, Júlia tinha consciência de que ainda o amava. Sentia falta de estar assim com ele, de conversar, da companhia do seu amigo de infância que depois se transformara em seu amor. Estar ali em seus braços a remetia a tantos momentos felizes e doces que tiveram ao longo dos anos, mesmo antes de namorarem. André fora seu porto seguro em momentos dolorosos, como a perda dos pais dela e apesar de tudo ainda sentia segurança em estar ao lado dele. Deixou-se ficar, aninhada naquele colo que fez tanta falta nos últimos dois anos.

Enquanto Júlia passeava por suas memórias, André se consumia em culpa. Perdido nas próprias lembranças, não conseguia se perdoar por ter sequer cogitado que ela tivesse optado livremente por um aborto. A conhecia desde sempre, fora seu melhor amigo, a amava desde que conseguia se lembrar e, no entanto, agira como um canalha com ela. Ao reviver aqueles momentos, sua reação da época pareceu agora ainda mais idiota do que ele se lembrava. Tudo, todas as atitudes de Júlia eram justificáveis. Foram reações às ações dele. Ele virara as costas em um momento crucial da vida de ambos, em um momento de fragilidade dela. Saber de todos os detalhes foi chocante e doloroso, estava aéreo e ainda processando tudo. Ela passara por momentos terríveis, e ele não estava ao seu lado. E ainda ousara sentir raiva dela? Fora capaz de imaginar que ela fizera um aborto para se livrar do filho deles! Que tipo de pessoa ele era? Sentia-se pior do que um verme. Percebia agora o quão frágil ela era. Ele a quebrara de tantas formas. Mas faria de tudo para ajudar a consertá-la. Continuava com os braços em torno dela, acariciando suas costas enquanto esperava que se acalmasse. A cabeça de Júlia estava pousada em seu peito e podia sentir o perfume dos cabelos dela, ainda era o mesmo que se lembrava. O cheiro o transportou no tempo, trouxe à tona vários momentos que eram verdadeiros tesouros da memória: ele chegando e desmanchando o coque que ela havia feito com a caneta, espalhando os volumosos cabelos castanhos e aquele perfume delicioso no ar; O primeiro beijo deles, que acontecera quase por acidente. Bem antes de realmente assumirem o namoro, houvera um único beijo, que aconteceu quando ainda eram adolescentes, antes mesmo da morte dos pais dela. Ele estava ensinando-a a andar de skate, ela se desequilibrou e ao tentar evitar a queda, ambos acabaram no chão, meio abraçados, rindo de si mesmos. Os cabelos deliciosamente perfumados de Júlia espalhados, ela tentando prendê-los e se levantar. Ele tocou seu rosto, perdido naquele sorriso lindo, as bocas se aproximaram e foi seu doce primeiro beijo; E a melhor das memórias, quando dormiram juntos pela primeira vez, após fazerem amor deitaram de lado na cama, frente a frente, o olhar perdido um no outro. Os olhos dela brilhavam, ela emitia uma energia que o inebriava, parecia uma deusa mítica de tão linda, tinha novamente os abundantes cabelos espalhados em torno de si, perfumando o ar, perfumando seu mundo. Suspirou com aquelas lembranças. Amava demais aquela mulher, precisava dela para viver. Saindo do seu devaneio e voltando ao presente, ele percebeu que Júlia se acalmara, agora apenas emitia suspiros, parecendo cansada. Se virou um pouco, olhando para seu rosto e percebeu que vencida pelo esgotamento emocional, ela adormecera. Trazia no rosto as marcas do choro recente, mas nada era capaz de apagar a beleza daqueles traços. Quando a vira, pela manhã, ficara impressionado. Ela estava ainda mais linda do que se lembrava, mas notara que estava diferente, trazia uma sombra no olhar. Agora entendia o porquê. Tinha que fazer algo, precisava apagar aquela sombra, precisava que a alegria voltasse a brilhar naqueles olhos.

A Lei do Amor (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora