Vou tirar um tempo sozinha.
Preciso fazer algo por mim...
Acordei com essa ideia. E quando coloco uma coisa na cabeça, eu mesma chego a me condenar por não voltar atrás.
Levantei cedo, abri as cortinas do meu quarto. O sol estava iluminando tudo em um céu sem nuvens.
Passei pelo corredor, e me convenci que aquela casa era grande demais para mim. Quatro quartos, e só em pensar nas três suítes, e no banheiro social que teria que limpar, me cansaram. Uma cozinha e sala de jantar, que se integrava a sala de estar. A mobília era um pouco antiquada, porém acho que tem uma certa qualidade. Poderia vender tudo aquilo e conseguir um bom dinheiro... pensei.
E as lembranças?
Lembranças são coisas que nos deixam tristes. As vezes nem notamos que a nostalgia, nos dá um sentimento de inferioridade por não poder voltar ao passado. E inconscientemente ficamos tristes. E tristeza, eu já senti o suficiente por uma vida inteira.
Ah, se pudesse perder a memória!
Com certeza faria uma nova história, menos dramática talvez.
Peguei uma mala empoeirada que havia em cima do guarda roupa de doze portas de minha mãe. Bati algumas vezes e o cheiro de mofo era forte.
Procurei outra opção, mas não havia. Fui em meu closet e peguei uma calça jeans, uma camiseta branca, o que é um clássico para viagens. Alguns vestidos, um casaco preto, meias, camisolas e roupas íntimas. Pensei, no que poderia levar mais? Vi uma foto colada numa das paredes...
Não... Quero distância de lembranças! - Pensei alto, balançando a cabeça.
Fui até a garagem carregando a mala, tirei o cobertor empoeirado que cobria o meu transporte. Uma caminhonete Ford F100, que era um o baby do meu pai. Item de colecionador. Mas ele nesse momento não iria se importar, e nem teria como me impedir.
A estrada me esperava...
Senti o calor do sol no meu rosto quando abri a garagem para dar passagem ao meu veiculo. Como um beijo de boa sorte a luz me encheu de esperança. A rua vazia era convidativa a partir. Muito cedo para estar de pé num domingo de manhã. Meus vizinhos ainda aconchegados em seus cobertores, dormindo e sonhando com as mesmices de sua vida rotineira, não poderiam imaginar que talvez não iriam me ver mais. Desejei sorte para todos e também me desculpei de sair fazendo um pouco de barulho, pelo motor antigo de meu Ford.
Rua das Flores, com paralelepípedos disformes e casas antigas de madeira, algumas até tombadas como patrimônio histórico, se tornaram parte daquele local. Vizinhança velha e conhecida de cidade pequena. Não recebíamos muitos visitantes ou turistas, embora fosse uma cidade muito bonita. E todos ali eram pessoas boas e hospitaleiras. Então preferi sair cedo, não gostaria de olhares questionadores das fofoqueiras vespertinas.
Dizem que "só recebemos o fardo que conseguimos suportar". O meu fardo está pesado demais então o joguei para longe, indo pela contramão de uma rua sem saída que entrei sem querer, literalmente.
Nesse domingo de Sol, em abril de 2018 estou seguindo rumo às montanhas, creio que levarei umas três horas, sem parar, pela estrada rumo a oeste. Terei tempo para pensar melhor, se por acaso sentir a vontade de voltar. Embora, me conhecendo como conheço, voltar atrás não será uma opção.
A cabana de minha família, próxima das montanhas Jura, me espera.
Parei no cruzamento onde ficava a loja de roupas que eu e minha mãe tínhamos no centro da cidade. O letreiro estava lá, um pouco desgastado pela ação do tempo, mas ainda de pé. Com o nome "Belles boutique". Cheguei a nos ver, radiantes atendendo clientes... a loja decorada com tema de Páscoa... eu atrás do caixa, enquanto minha mãe com seu dom de vendedora, oferecia pacientemente algo que poderia ser ao gosto da possível compradora. Lembro quando dizia: "Um vendedor tem que ser, intuitivo, empático e muito paciente". Por isso eu preferia ficar atrás do caixa. Pois uma caixa só precisa entender de calculadora e contar notas. Nem precisava ser simpática, se eu não quisesse, e ainda assim não perdia as vendas.
Passei pela ladeira da rua São Judas e toda uma memória de infância me tocou. Lembrei do som da respiração de minha mãe quando me levava nos braços. Com a cabeça em seu ombro direito, podia escutar ela ofegante, e eu muitas vezes fingia que estava a dormir, para ser levada. Não tinha a mínima noção do peso que provavelmente eu poderia ser para ela, subindo aquela ladeira íngreme. Ela fazia esse percurso todos os dias, até a casa de minha avó, Marta. Acordava ás 7:00 horas em ponto, por um reloginho de cabeceira. Tão pequeno, mas seu som era perturbador e irritante, não tinha como continuar dormindo depois de alguns segundos de raiva por ter acordado no barulho ensurdecedor. Ela levantava rapidamente. Me lembro bem, que logo, sentia o cheiro forte e marcante do café...
Antes de conseguir erguer a nossa loja de roupas, ou como ela preferia chamar, "Boutique", minha mãe trabalhou por muitos anos como vendedora em alguns comércios locais, enquanto meu pai era o motorista e segurança do prefeito da cidade. Como funcionário público, não ganhava muito dinheiro. Mas vivíamos bem. Um casal jovem com uma filha pequena e muitos sonhos. Até que aos poucos e com muito esforço, foram conseguindo realizar um por um.
Minhas memórias, frequentemente, vagam entre esses pontos curtos do passado e coisas atuais frustrantes. Um verdadeiro filme ecoa em minha mente. Coisas bobas, boas e terríveis. Tento me concentrar e focar na estrada a minha frente.
Me veio o dia do vazio...
Sempre ouvi falar que temos em nosso cérebro uma área de escape, onde nos colocamos por proteção quando algo muito traumático e perturbador acontece. E isso não acontece com todo mundo, cada um tem seu "modo de escape", se assim posso dizer.
Já vi pessoas desesperadas, gritando, se rasgando, literalmente. Agressividade ou choro descontrolado. Mudança de personalidade e comportamento infantil. Mas comigo não foi assim... entrei na "caixa do vazio". Se melhor posso descrever, "anestesiada", seria o melhor adjetivo empregado.
Estava numa sala, mas não estava sozinha, muitas pessoas ali comigo. Alguns vinham me abraçar. É estranho pois sentia que me tocavam, mas não conseguia sentir o toque deles. Juro que não havia tomado qualquer medicamento ou usado algum tipo de droga. Meu cérebro que deveria ter me dopado com algum hormônio da "calma". Havia uma pressão no meu estômago, na verdade uma dor, é como se uma mão estivesse apertando minhas entranhas de vez em quando, que até contraia meu abdômen na hora que acontecia. Via algumas pessoas cochichando, me olhando, devia ser estranho mesmo, uma pessoa nessa situação que ainda não derramara uma lágrima sequer.
Chamaram um padre e um pastor, via a boca deles balbuciando algo que não conseguia definir o que era.
Tinha pessoas conhecidas, mas a maioria nunca tinha visto na minha vida. Falavam comigo, mas não podia ouvir, fiquei surda nesse momento. Não conseguia tirar os olhos dela...
Minha mãe estava linda, serena e como num sono profundo, sei que não sentiria mais dor. Seus longos cabelos negros ainda mantinham o brilho, sua pele branca, um pouco pálida, mesmo com uma maquiagem leve. O batom rosa claro, era o preferido dela. Fico imaginando agora porque nunca a vi com um batom vermelho. Acho que ficaria tão bonita. Nesse dia enterrei minha mãe, e ainda bem, que o vazio dos meus pensamentos não me permitiu sentir nada.
Balancei a cabeça, tentando recobrar os sentidos. Estava dirigindo. Mesmo com as lágrimas escorrendo por meu rosto.
Estou entrando na estrada. Uma planície com plantações rasteiras, me avisa que tenho um longo caminho a frente. Ao longe consigo ver uma subida que se acaba no horizonte. A esperança me atrai e me faz inconsciente pisar o pé no acelerador. Me sinto forte e decidida, mas ainda me pergunto se alguém nessa cidade irá sentir minha falta. Se alguém irá perguntar por mim. Se deixei alguma lembrança na memória deles. O sentimento de abandono é profundo e sutil, nos enche de perguntas que não interessam. – Não me importo! – Digo baixinho. Quero fugir de mim, pois preciso encontrá-lo!
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Envolto
ParanormalMelanie, uma garota confusa e sem perspectivas que encontra paixão, liberdade e prazer em Daniel, um ser desconhecido. Num vício e cumplicidade mútua eles se unem, descobrindo os segredos mais obscuros, um do outro. Jonathan, procura salvar seu gran...