Capítulo 6 - Aqui vamos nós!

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Ouvi dizer que quando somos vítima de uma traição, para nosso cérebro a dor se equipara a perca de um membro. Como se nos tivessem arrancado uma perna, um braço, algo realmente precioso para nós. E assim todo o nosso corpo tenta tratar a dor. E o tratamento da dor não é rápido. É penoso e exaustivo. Nosso corpo entra em colapso, há uma reação nas nossas defesas, e como se fossemos atingidos por algum inimigo microscópico, nossa imunidade é enganada e ficamos febril, como em uma forte gripe. Olhos inchados pelas lágrimas provocam secreção em nosso nariz. A comida fica sem sabor, quando nos forçamos a comer. Embora a fome não seja algo que apareça com frequência. O coração fica pesado e dolorido. Pulmões cansados, e músculos sem força . O sono por remédios, se torna um único refúgio para o descanso e esperança de acordar do pesadelo.

Eu estava no fundo do poço, sentimentos destruídos, pensamentos desorientados, me sentia uma zumbi. Cheguei até pensar que para mim o melhor seria a morte.

Só o que me contentava era que todos os dias meu novo amigo vinha falar comigo. Eu já sentia sua presença ao longe, e confesso que era algo que me agradava. Não sabia quem ele era, de onde vinha, mas tinha a certeza que ele não me faria mal.

- Tu precisas comer, minha querida! - Me dizia com sua voz suave.

Me contava histórias antigas de algum tempo remoto. E durante todo o dia eu sentia sua presença, mas só falava comigo durante uns cinco minutos no máximo no dia inteiro. Notei que ele estava muito fraco, assim como eu. Ainda não tinha forma, era como uma sombra se arrastando. Algo assustador no início, mas depois se tornou rotina.

Nos acostumamos a tudo, alegria, tristeza, dor ao medo. Quando um sentimento se torna rotina, ele faz parte de nós. Sim, nos acostumamos até com a alegria. Se a temos sempre, ela se torna comum. E algo comum não nos remete a felicidade e sim a hábito. O mesmo para os outros sentimentos. Eu deveria ter medo dele, uma pessoa normal talvez pensasse isso. Mas simplesmente ele se tornou minha rotina.

Comecei a me interessar muito por ele e querer cada vez mais sua presença.

Sempre dizia que precisava de mim, e eu não entendia como poderia ajudá-lo.

A curiosidade me consumia e cada vez eu o chamava para conversamos, embora ele não falasse muito sobre si, sempre enfraquecia e sumia. Mas notei que com o passar do tempo ficava sempre um pouco mais, pedia que eu falasse sobre mim, sobre minhas lembranças, minha vida antes de tudo, era um exímio ouvinte ...

- Amigo, vem aqui!

Era sempre o que eu dizia para chamá-lo. E de prontidão ele se apresentava.

Perguntei seu nome:

- Tu podes escolher um nome para mim, se assim o queres, no entanto, meu nome era Daniel. – Foi o que ele me disse. Então ele tinha uma vida! Era uma pessoa. Mas nunca entrou em mais detalhes sobre isso.

Então o chamava de Dan, uma forma carinhosa, não sei porque o chamei assim, fazemos abreviações de nomes daqueles que gostamos. No começo pensei que poderia ser alguém de minha família como meu pai. Mas logo descobri que não. Era outra pessoa, como um anjo da guarda, eu o imaginei. Meu Anjo Daniel.

Aos poucos, minha mente só pensava nele, como ele poderia ser fisicamente e por muito tempo fiquei fantasiando. Me perguntando se algum dia o poderia ver, ou tocar, ou beijar...se ele pudesse se tornar real, seria tão bom!

Alguns dias tinham se passado da ultima vez que o vi. E me preocupei quando não senti mais sua presença.

- Amigo, vem aqui! Dan?

O chamei por diversas vezes, mas ele não aparecia. Me abateu um desespero em pensar que ele poderia ter sumido para sempre. Meu único amigo.

Gritei. – Dan por favor não me deixe! Eu preciso te ouvir só mais uma vez, por favor! Falava já em prantos.

Mas nem sinal de sua presença.

Meu celular vibrou com uma notificação, o que me assustou. Mas era uma mensagem de Jonathan.

Jonathan – Mel, você está bem. Podemos conversar?

Não tinha forças nem para responder, embora diria:

- Não temos nada o que conversar! – como já tinha feito diversas vezes. Talvez seria melhor apenas bloqueá-lo, mas algo dentro de mim, gostava de sua insistência. Penso que me fazia bem a ideia de que eu o estava humilhando com meu desprezo. Já havia se passado quase três meses da nossa separação e ele não parava de me importunar. Já Samanta, nunca mais tive noticias.

Eu só pensava na possibilidade de nunca mais ver meu amigo. Quando já estava adormecendo de olhos inchados de tanto chorar...

- Mel, meu amor! Estou aqui. – um sussurro fraco porém audível.

Acordei como num ímpeto de vê-lo.

- Sim, sim! Pensei que você tinha me abandonado. – Falei em tom de desespero.

- Nunca te abandonarei! Apenas me sinto fraco, minha querida.

A sua voz ficava cada vez mais distante.

- Preciso te ver.... preciso te ver, por favor.

- Minha querida, ainda não consigo materializar-me, estou fraco demais, mas tu podes me ajudar e me salvar.

- Como assim? Claro que te salvarei, me diga como?

- Em breve... – a voz estava sumindo.

- Dan, por favor! Amigo? – Mas não conseguia sentí-lo mais.

Não consegui dormir pensando no que poderia fazer para poder salvar meu anjo.

Após muitos dias sem notícias dele, não vi mais sentido continuar ali. Resolvi sair daquela casa e lembrei da Cabana de minha família. Planejei em como poderia me afastar de tudo e me livrar daquelas lembranças de percas e traição. Uma revolta me consumiu pois era como se tivesse perdido tudo. Como eu era uma pessoa desgraçada! Mas era muito covarde para tirar minha própria vida.

Na cabana talvez encontrasse com mais facilidade meu amigo novamente, era um lugar remoto, em meio a natureza, poderia de alguma forma despertar a conexão entre nós novamente. Essa na verdade era minha única esperança. E essa esperança foi o que me deixou mais forte.

Nesse domingo de manhã, na estrada, escuto a rádio, toca Lovely de Billie Eilish. Essa canção me toca profundo e causa sensações em meu corpo. É adorável o que sinto por Daniel, mas ao mesmo tempo isso me deixa presa em algo que não parece viável. Para mim, é tudo real e intenso, embora meu senso racional o tempo todo me questione se ainda estou sana.  Como ele me deixou tão obcecada? Será que ele só existe em minha cabeça? Algum dia eu poderei tocá-lo? Como posso desejar tanto alguém que nunca vi? A curiosidade estava me cegando e me fazendo querer mais. Me tirava o sono, e sabia que só poderia ao menos respirar tranquila depois de encontrá-lo. Sei que procuro um caminho sem volta, que pode ser bom ou ruim, natural ou insano. O desconhecido precisa ser descoberto. Então, chega de esperar, e aqui vamos nós!



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