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Charlotte tentava prestar atenção no que seus colegas de trabalho falavam, estava em mais uma reunião de emergência, alguém da empresa havia causado um grande problema com um grande doador que no momento se recusava a continuar com a doação mensal se eles não se retratassem. Ela achava uma grande infantilidade da parte dos dois, até porque o funcionário não havia errado ao dizer que ele doava somente para parecer um herói na frente das câmeras, porém sua chefe iria demiti-la se ela ousasse falar o que pensava tão sinceramente.

Não era dos seus planos continuar naquele laboratório, no início aceitou o emprego pois poderia mudar de alguma forma o impacto que grandes empresas causavam no meio ambiente e na vida das pessoas mais carentes, porém, ela começou a se destacar e por conta disso começou a ser promovida. Vieram mais pesquisas, mais lideranças, mais reuniões, mais viagens e um contato mais direto com a parte influente do laboratório. Sempre soube que nada era perfeito, eles necessitavam de um bom relacionamento com os mais ricos para poderem fazer algo pelos que possuíam menos, era uma troca de favores e apesar de tudo o que conseguiu fazer por outros enquanto estava ali, sua mente se desgastava a cada dia que continuava presa naquele mundo e consequentemente longe de sua família.

Este era o ponto que a estava fazendo ignorar a reunião, assim que voltou da primeira viagem que durou quase quatro dias, percebeu o quanto sentia falta da loucura e do amor da sua família, foi recebida com festa e muitos abraços. Mas depois da segunda, terceira, sexta, oitava viagem quase seguidas, tudo ficou saturado. Quando voltava seus filhos já pareciam estar acostumados a tê-la longe, a casa se movimentava sem ela, eles seguiam sem ela e Henry parecia não querer demonstrar seu desconforto, mas ela o sentia.

Era frustrante, ela era uma cientista que estava trilhando uma carreira de sucesso, mas que não devia estar acima dos outros pontos de sua vida, ela era mãe e companheira, o que fazia seu coração apertar. Estava ciente diariamente do quanto as mulheres são cobradas, se estão longe dos filhos são péssimas mães, se estão com eles o tempo todos são péssimas mulheres por só ficarem em casa, o trabalho e os filhos sempre serão um choque enorme até entenderem que não precisa ser. Ela pode muito bem ter uma grande carreira e ter seus filhos ao seu lado, pode ajudar a encontrar alternativas para o uso de produtos químicos menos agressivos e ajudar eles nos deveres de casa, pode viajar para congressos e tirar um fim de semana só para seus dois pequenos. Ela pode muito bem, e está fazendo isso, confiar os deixando com o pai. Pena que nem todos pensam assim.

Ela ama Henry, ama cada parte sonhadora e louca dele, após tudo o que passaram pode dizer com certeza que não vê outra pessoa ao seu lado para passar o resto da vida com ela. Mas ele não recebe os olhares que ela recebe, não escuta o que ela escuta, não tem o mesmo tratamento que ela. Para o mundo ele é um herói, a personificação de pai perfeito, Charlotte sabe o pai maravilhoso que ele é, mas se os papéis fossem inversos ela definitivamente não seria exaltada por estar sendo mãe. Todas essas frustrações, tanto do lado dela quanto do dele, iriam aparecer em algum momento e após a última viagem, quando chegou em uma madrugada fria, eles tiveram sua primeira grande discussão após anos, foram sussurros raivosos e cansados, mas foram ditas palavras que magoaram a ambos.

Tombou a cabeça para trás e fitou o teto em branco, Karen falava sobre a importância de manter o financiador e o que poderíam dá-lo em troca para que não abandonasse o laboratório. Charlotte queria sumir dali, não ligava para o "grande finacioador", o havia conhecido e podia afirmar que era somente mais um homem branco rico querendo encobrir alguma merda de seu passado e preparar o terreno para defesa de alguma idiotice futura. Seu celular vibrou, olhou despreocupada pensando ser mais uma ligação de sua mãe, mas ficou em alerta assim que leu o nome da diretora do colégio de Harriet.

- Hum, com licença, Karen, mas tenho que atender. - interrompeu sua chefe, que fechou a boca e a encarou com uma expressão neutra. - É rápido.

- Por acaso é o presidente pedindo para você salvar o mundo? - Charlotte inspirou profundamente para não dá-la a resposta que queria.

- É da escola da minha filha, preciso mesmo atender. - o celular ainda vibrava em sua mão.

- Estamos tratando de algo bastante importante aqui, Charlotte, tenho certeza de que sua filha pode esperar.

O tom entediado dela a fez se levantar rapidamente, todos da mesa alternavam o olhar entre as duas. Karen a fitou com os olhos estreitos, era um aviso e Charlotte sabia disso, a Hart sustentou o olhar e arqueou uma sobrancelha em desafio. Não iria ficar, mas esperou somente alguns segundos para saber o dano que iria causar na chefe caso saísse dali. Os olhos de Karen brilharam em raiva e Charlotte pegou sua bolsa, deu a volta na mesa e saiu da sala após a lançar um simples aceno.

- Olá, desculpa a demora. - atendeu apressada assim que saiu para o corredor.

- Oh, senhora Hart, que bom que atendeu.

A voz aliviada da diretora Annie a fez apertar o botão do elevador repetidamente. Algo não estava certo.

- O que houve?

- Tentamos ligar para o seu marido, mas ele não atendeu.

- O celular dele foi meio que destruído. - informou, ocultando a parte em que foi culpa de Oliver e Harriet que resolveram brincar de saber se um objeto se despedaçava ou não quando jogado do telhado da casa.

- Certo. Então, preciso que você venha o mais rápido possível para a escola, Harriet se envolveu em um pequeno incidente.

- Que tipo de incidente?

Parou no andar do estacionamento e começou a procurar por seu carro. Mas não conseguia deixar o incômodo que a palavra a causou.

- É melhor a senhora vim para conversarmos melhor.

- Harriet está bem?

- Ela está. - seu tom não deixava dúvidas de que mais pessoas estavam envolvidas.

Charlotte soltou o ar que nem percebeu que estava prendendo, destrancou o carro e se jogou no banco do motorista.

- Ainda vou demorar um pouco, mas estou indo. - garantiu, colocando o celular no viva voz e o apoiando em um suporte.

- A estaremos esperando.

- Ok, tchau.

Desligou rapidamente e ligou o carro, mas antes fez outra chamada. O telefone da floricultura chamou mais de cinco vezes e caiu na caixa postal, Charlotte soltou um grunhido irritado e tentou novamente, continuava dando na caixa postal. Resolveu que continuaria tentando até conseguir e por enquanto somente dirigiria o mais rápido possível até sua filha.

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