Privilégio

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 Aviso de gatilho: abuso infantil.

 Overhaul planejava um dia relativamente calmo, sem problemas no carregamento, sem fugas inoportunas da pirralha e sem incompetentes para ser obrigado a tomar conta. Todos sabem as regras e tinham medo de desrespeitá-las, se o fizessem poderiam apenas torcer para que o líder se encontrasse ocupado demais para lidar com a insubordinação, dedos arrancados por Rappa ou outras punições violentas eram melhor que perder a vida devido à tolerância zero sustentada pelo primeiro.

 Descansar era uma das coisas mais difíceis como dono do morro, mesmo que sustentasse uma face apática e determinação extrema com foco implacável, era humano e achava interessante passar um dia somente em casa, na ausência de armas apontadas para si a cada cinco segundos. Outro fato que nunca iria admitir era como sua relação com Chronostasis passava do limite somente amigável em alguns momentos, sendo este o único autorizado a lhe tocar.

 Kurono não se importava em passar o dia inteiro de luvas se tinha aquele privilégio, obedeceria tudo que seu líder lhe ordenasse mesmo sem nada em troca, era por conta daquela lealdade cega constante que via o Bêbado o chamar de "gado" repetidas vezes. Não se abalava com a intenção pejorativa, o que sai da boca de um ser constantemente alcoolizado não merecia a atenção que este desejava, tudo que fazia quando ouvia era mandá-lo para outro lugar.

 Passos calmos no corredor da casa, não era uma construção muito grande para não chamar atenção desnecessária contudo não se igualava às menores. Atravessou o corredor com paciência, girando a maçaneta brilhante desinfetada regularmente, o interior era o que mais diferenciava das outras residências, com móveis caros que representavam o patamar que Chisaki alcançara dentro daquele território desde que assumiu o comando.

 Estava longe de ser um mar de rosas, diversos integrantes da Shie Hassaikai, ainda que se mostrassem fiéis, não estavam satisfeitos com a troca de direção e a maneira como controlava a organização criminosa. Kai era ambicioso, não vendo motivos para se prender ao morro quando podia expandir seu negócio para outras áreas, formando parcerias para seu benefício e, no momento, aguardava uma resposta para sua sugestão de trégua enviada à Liga da Quebrada.

 A notícia que esperava chegava vestida de branco, tirando os sapatos na entrada, sua máscara contrastava com a preta do chefe, sendo removida do elástico com cuidado pela mão já descoberta:

 — Shigaraki disse que topa, mas ele não vem pro nosso território sozinho. Tem que ser próximo ao território deles e ele vai levar duas pessoas com ele.

 — Então que ele leve a Toga e o Twice, vou arranjar um lugar que seja bom para nós dois. — retirou o próprio tecido que cobria a boca, o depositando na bancada.

 — Tudo bem.

 Hari terminou de remover o tecido branco dos dedos, o pousando na superfície de pedra ao lado da pia no banheiro, aproveitando para lavar as mãos, puxando um cigarro em seguida para se juntar ao superior na varanda que encarava o quintal. Acendeu, tragou e expeliu a fumaça, sabendo que o tom usado anteriormente não era o comum de uma ordem urgente e se permitindo descansar com companhia.

 Estava com ele desde antes da morte do mentor, o qual viveu até demais considerando a expectativa do ramo, adquirindo permissões que Nemoto poderia apenas sonhar com, como conhecimento profundo dos planos arquitetados. Que era estranho se aliar ao maior rival não havia negação, porém duvidar era inaceitável, seus comentários serviam como meros incentivos ou confirmações, os planos de Overhaul eram sempre perfeitos aos seus olhos:

 — Quando a dupla vier pra cá, eu entrego eles ao Shin? — agradava a ambos conseguirem pensar nos mesmos detalhes sem explicar um ao outro frequentemente como correria o planejamento.

 — Sim, a certeza que aquele desgraçado não vai mandar eles nos traírem tem que ser total.

 — Entendi. Perfeito como sempre. — ficava no ar se ainda mantinha o assunto, com as orbes escuras observando o outro jovem presente no espaço com admiração.

 Chisaki não acrescentou nada, fazendo jus a sua natureza objetiva, mesmo que não tivesse uma tarefa para o momento além de fitar o horizonte. Permaneceram imóveis até que só sobrasse a bituca do cigarro, apagada em um cinzeiro e os resquícios aéreos da substância se esvaíssem para que a porta ao quarto fosse aberta novamente, o cheiro era suportável somente em locais onde pudesse se dissipar com facilidade.

 Novamente no interior, era momento de se separar, a manhã e metade da tarde de folga era suficiente, de todos os luxos que podia se dar, aquele era um dos que precisava largar. Ciente que o gosto de sua boca desagradaria, Chrono se restringiu a um selinho, este recebido de bom grado. Vestiu as luvas e calçou de novo o tênis branco, arrumando também o casaco e a máscara antes de descer na frente, preferiam não chegar juntos nos lugares algumas vezes, fofoqueiros já falavam demais.

 Conveniente inclusive era como vários não falavam nunca mais após comentar sobre a vida de quem não deviam, se livrar de empecilhos era especialidade. Aguardado poucos minutos, rumou afora por si só, incomodado com o barulho incessante de uma porta em específico, com batidas frequentes na estrutura trancada. Apagou a luz, esperando que a pequena compreendesse a mensagem da inutilidade de seu esforço, não aconteceu:

 — Por favor me deixa sair. — a voz fina e chorosa saiu embargada, lágrimas rolando pela bochecha de encontro à blusa e chão.

 — Cala a boca. — reconhecendo o timbre masculino do outro lado da porta, a menina estremeceu — Toda hora ganha um brinquedo novo e sai pro parquinho, não tem do que reclamar, tá querendo morar na rua? Passar fome?

 Paralisada, não sabia como retrucar, a mera presença de Kai era sufocante, parava seu corpo imediatamente. O líquido salgado ainda caía, no entanto agora ela se esforçava para que não deixasse escapar som diante da ameaça, com os lábios cobertos pelas palmas pequenas em uma reação automática:

 — Você tem sorte, ouviu? Poderia estar com alguém que não te dá nem água. Fique quieta e não cause problemas.

 Depois do que lhe pareceu uma eternidade, escutou os passos sumirem em outro cômodo, a largando para que se afogasse na própria tristeza sozinha.

Boku no morroOnde histórias criam vida. Descubra agora