O gelo no porto ficou negro e incerto ao sol de Março; em Abril haviam águas azuis e um golfo ventoso e coberto de branco novamente; e mais uma vez o farol de Four Winds iluminava a escuridão.
"Fico tão contente por o ver novamente," disse Anne, na primeira noite da sua reaparição. "Senti tanto a falta dele no Inverno. O céu de noroeste parece vazio e solitário sem ele."
A terra estava macia com folhinhas bebés de um verde dourado. Havia uma névoa esmeralda nos bosques para além do Glen. Os vales próximos do mar estavam cobertos de nevoeiros encantados ao nascer do sol.
Ventos vibrantes iam e vinham com espuma de sal na aragem. O mar ria e brilhava, limpava-se e atraía, como uma mulher linda e coquete. A aldeia de pescadores voltou á vida.
O porto estava novamente vivo com velas brancas dirigindo-se para o canal. Os barcos começaram a navegar para dentro e para fora novamente.
"Num dia de Primavera como este," disse Anne, "eu sei exactamente como a minha alma se vai sentir na manhã da ressurreição."
"Há alturas na Primavera em que eu sinto que me podia ter tornado um poeta se tivesse sido apanhado em pequeno," comentou o capitão Jim. "Dou comigo a magicar em velhas rimas e versos que ouvi o mestre- escola recitar há sessenta anos. Não me lembro deles noutras alturas. Agora sinto como se tivesse que sair para as rochas, para os campos ou para a água e gritá-los."
O Capitão Jim tinha vindo nessa tarde para trazer a Anne uma carga de conchas para o jardim dela, e um pequeno ramo de erva de cheiro que tinha encontrado entre as dunas.
"Está a ficar cada vez mais rara nesta costa," disse. "Quando eu era rapaz havia muita. Mas agora só de vez em quando é que se encontra, e não é quando se vai á procura. Temos que dar com ela, vamos a caminhar entre as dunas de areia, sem pensar em erva de cheiro e de repente o ar está perfumado e ali está a erva debaixo dos nossos pés. Faz-me sempre lembrar a minha mãe."
"Ela gostava do cheiro?" perguntou Anne.
"Não que eu saiba. Nem sei se ela alguma vez viu erva de cheiro. Não, é porque é um perfume de mãe, não muito novo, sabe, um cheiro temperado e fiável e completo, mesmo como uma mãe. A noiva do mestre- escola tinha-a sempre entre os lenços. Pode pôr esse raminho entre os seus, senhora Blythe. Eu não gosto desses cheiros de compra, mas um aroma de erva de cheiro está sempre bem onde quer que esteja uma senhora."
Anne não tinha ficado muito entusiasmada com a ideia de rodear os canteiros com conchas, como decoração não a cativaram á primeira. Mas ela não ia magoar os sentimentos do capitão Jim por nada, e reconheceu uma virtude que de início não viu, e agradeceu-lhe de todo o coração. E quando o Capitão Jim rodeou cada canteiro com uma fila das grandes conchas brancas, Anne descobriu surpreendida que gostava do efeito. No relvado de uma casa de cidade, ou mesmo no Glen, não seriam adequadas, mas aqui, na casinha antiquada e ligada ao mar, elas pertenciam.
"Ficam mesmo bem," disse sinceramente.
"A noiva do mestre-escola tinha sempre conchas á volta dos canteiros," disse o Capitão Jim. "Ela tinha uma mão de ouro para as flores. Ela olhava para elas e tocava-lhes, e elas cresciam como doidas. Algumas pessoas têm esse jeito, e parece-me que você também o tem, senhora Blythe."
"Oh, não sei, mas eu adoro o meu jardim, e gosto muito de trabalhar nele. Trabalhar com coisa verdes, vivas e em crescimento, vendo-as todos os dias deitar novos rebentos é como tomar a Criação na nossa mão, penso eu. Agora o meu jardim é como a fé, a substância das coisas que se esperam."
"Surpreende-me sempre um bocadinho ver as pequenas sementes castanhas e pensar nos arco-íris que têm," disse o capitão Jim. "Quando eu penso nas sementes não me custa a crer que tenham almas que vivem em outros mundos. Não acreditaríamos que havia vida nesses pedaços pequenos, algumas pouco maiores que grãos de areia, quanto mais cor e cheiro, se não tivéssemos visto o milagre, não é?"
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Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Teen FictionObra da canadense L. M. Montgomery.