O Gilbert insistiu que a Susan devia ficar na pequena casa durante o Verão. Anne protestou de inicio.
"A vida aqui só com nós os dois era tão boa, Gilbert. Estraga um bocadinho ter cá mais alguém. A Susan é uma pessoa muito querida, mas é uma estranha. Eu posso muito bem fazer o trabalho de casa."
"Tu tens que seguir as recomendações do médico," disse o Gilbert. "Há um velho provérbio que diz que as mulheres dos sapateiros andam descalças e as dos médicos morrem cedo. Eu não quero que isso se verifique na minha casa. Tu vais manter a Susan cá até voltares a ter o mesmo desembaraço e as tuas bochechas se encherem mais um bocadinho."
"Tem que levar as coisas com calma, minha querida senhora," disse a Susan, entrando abruptamente. "Descanse e divirta-se e não se preocupe com a despensa. A Susan está ao leme. Não vale a pena termos um cão se tivermos que ser nós a ladrar. Eu vou levar-lhe o pequeno-almoço á cama todos os dias."
"Concerteza que não," riu-se Anne. "Eu concordo com a miss Cornélia quando ela diz que é um escândalo que uma mulher que não está doente tome o pequeno-almoço na cama, um escândalo que quase se aproxima das enormidades dos homens."
"Oh, a Cornélia!" disse Susan, com desdém. "Eu acho que a minha querida senhora tem tacto suficiente para não ligar ao que diz a Cornélia Bryant. Eu não vejo porque é que ela tem sempre que criticar os homens, mesmo se é uma velha solteirona. Eu sou uma velha solteirona e ninguém me ouve criticar os homens. Eu gosto deles. Tinha-me casado com um se pudesse. Não é engraçado que nenhum me tenha pedido, minha senhora? Eu não sou nenhuma beleza, mas sou tão bonita como a maioria das mulheres casadas que se vêem por ai. Mas nunca tive um noivo. Porque é que acha que foi?"
"Pode ser uma questão de predestinação," sugeriu Anne com grande solenidade.
Susan acenou afirmativamente.
"É o que penso muitas vezes, minha senhora querida, e é-me de grande conforto. Eu não me importo que ninguém me tenha querido se o Todo Poderosos assim decidiu pelos Seus sábios propósitos. Mas ás vezes surge a dúvida, minha querida senhora, e eu pergunto-me se talvez o velho mafarrico não tenha mais a ver com isto que o outro. E ai não me sinto nada resignada. Mas talvez," acrescentou Susan, alegrando-se, "eu ainda vá ter oportunidade de casar. Eu penso muitas vezes numa história que a minha tia costumava repetir:
'Nunca se tinha visto uma gansa tão azul mas mais tarde ou mais cedo...
Um ganso honesto apareceu-lhe no caminho e levou-a para companheira!' Uma mulher não pode ter a certeza de não se vir casar enquanto não for enterrada, minha querida senhora, e entretanto vou fazer umas poucas de tartes de cereja. Eu já reparei que o doutor as aprecia, e eu gosto de cozinhar para um homem que goste de comer."
A miss Cornélia apareceu lá nessa tarde, um bocado ofegante.
"Eu não me incomodo muito nem com o Mundo nem com o Demónio, mas a Carne incomoda-me um bocado," admitiu. "Você está sempre fresca como uma alface, Anne querida. Será que me cheira a tarte de cereja? Se cheirar, por favor convidem-me para lanchar. Eu não provei uma cereja este Verão, as minhas foram todas roubadas pelos patifes dos irmãos Gilman do Glen."
"Então, então Cornélia," repreendeu-a o Capitão Jim, que estava a ler uma novela ao canto da sala. "Tu não devias dizer essas coisas desses dois pobres rapazes sem mãe, a não ser que tenhas uma prova. Só porque o pai deles não é honesto demais não é razão para lhes chamares ladrões. É mais provável que tenham sido os pintarroxos a roubarem-te as cerejas. Eles são tantos este ano."
"Pintarroxos!" disse desdenhosa a miss Cornélia. "Humpf! Pintarroxos de duas pernas, acreditem!"
"Bem a maioria dos pintarroxos de Four Winds são construídos sobre esse principio," disse o Capitão Jim com gravidade.
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Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Novela JuvenilObra da canadense L. M. Montgomery.