"Tenho andado a ler os obituários," disse a Miss Cornélia, deixando o Daily Enterprise e retomando a sua costura.
O porto estava escuro e triste debaixo de um céu pesado de Novembro; as folhas mortas e molhadas colava-se ás janelas; mas a pequena casa estava alegre com a lareira acesa e primaveril com os gerânios e fetos que Anne dispusera.
"Aqui é sempre Verão, Anne," tinha Leslie dito certa vez; e todos os que eram convidados naquela casa sentiam o mesmo.
"O Enterprise parece estar dedicado aos obituários," comentou Miss Cornélia. "Tem sempre um par de colunas deles, e eu leio-as todas. É uma das minhas diversões, especialmente quando tem poesia original incluida. Oiça aqui uma amostra:
'Ela foi ter com o Criador Nunca mais vagueará Costumava cantar e tocar com alegria A canção do Lar Doce Lar.' Já alguma vez É uma pena. Há dez Aqui está o de amigos a o homem tinha homens.
Quem disse que não tínhamos talentos poéticos na ilha! reparou quantas pessoas boas morrem, queridinha? obituários e são todos santos e modelos, até os velho Peter Stimson, que 'deixou um grande circulo chorarem a sua perda precoce'. Bendito seja Deus, Anne, oitenta anos e toda a gente que o conhecia desejava que ele tivesse morrido há trinta anos. Leia obituários quando estiver em baixo, Anne querida, e vai ficar melhor, acredite. Eu só gostava de poder escrever os obituários de algumas pessoas. Obituário é uma palavra tão feia, não é? Este Peter Stimson de que eu estava a falar tinha uma cara mesmo assim, nunca o via que não me lembrasse da palavra. Só há uma mais feia que eu conheça, que é relíquia. Anne, queridinha, eu posso ser uma velha solteirona, mas se há coisa que me dê conforto é o facto de não vir a ser relíquia de homem nenhum."
"É realmente uma palavra feia," disse Anne, rindo. "O cemitério de Avonlea estava cheio de lápides antigas que diziam 'Sagrada Memória de', 'Relíquias de'. Fazia-me sempre pensar em qualquer coisa gasta e comida pelas traças. Porque é que será que as palavras ligadas á morte são tão desagradáveis? Eu gostava que o costume de chamar ao corpo do morto 'os restos mortais' fosse abolido. Eu tremo cada vez que oiço o coveiro dizer no funeral, 'Todos os que querem ver os restos mortais venham para este lado'. Dá-me sempre a horrível sensação de ir assistir a um festim canibal."
"Bem, eu só espero," disse calmamente Miss Cornélia," que quando eu morrer ninguém me chame 'a nossa irmã que partiu'. Eu dei uma descompostura por causa desta mania das irmãs e dos irmãos há cinco anos atrás, quando cá estava um evangelista a fazer reuniões no Glen. Eu não lhe achei grande graça desde o princípio. Senti logo que havia qualquer coisa de errado com ele. E havia! Sabe que ele fingia ser presbiteriano, Presbiteriano, intitulava-se ele, e foi sempre metodista. Ele tratava toda a gente por irmão e irmã. Tinha uma grande família, o homem. Ele agarrou-me a mão fervorosamente numa noite e disse-me 'Minha querida irmã Bryant, você é cristã?' Eu olhei um bocado para ele e depois disse-lhe calmamente: 'O único irmão que tive, senhor Fiske, foi enterrado há quinze anos e não adoptei nenhum desde essa altura. No que diz respeito a ser cristã, eu sou-o, acredito e espero, desde a altura que você gatinhava em cueiros'. Isso acabou com ele, acredite. E veja bem, Anne, eu não sou contra todos os evangelistas. Já cá tivemos homens honestos e competentes, que faziam o bem e assustavam os velhos pecadores. Mas este homem Fiske não era desses. Eu fartei-me de rir numa noite por causa dele. O Fiske pediu a todos os bons cristãos que se levantassem. Eu não me levantei, acredite! Eu nunca engracei com esse tipo de coisas. Mas a maior parte das pessoas levantaram-se, e depois ele pediu a todos os que queriam ser cristãos que se levantassem. Ninguém se mexeu por um bocado, por isso o Fiske começou a cantar um hino a plenos pulmões. Mesmo á minha frente o pobre Ikey Baker estava sentado no lugar dos Millison. Ele era um rapaz do orfanato, de dez anos, e o Millison matava-o a trabalhar. A pobre criatura estava sempre tão cansado que ferrava a dormir de cada vez que ia á igreja ou noutro sitio qualquer onde pudesse estar sentado cinco minutos. Ele estava a dormir desde o principio da reunião, e eu até estava a gostar de ver a criança a descansar, acredite. Bem, a voz do Fiske começou a subir, e os outros acompanharam-no, e o pobre Ikey acordou de repente. Pensou que era uma canção normal e que todos deviam estar de pé e levantou-se, já a pensar que ia levar uma sova da Maria Millison por estar a dormir na igreja. O Fiske viu-o, parou de cantar e gritou, 'salvou-se outra alma! Glória Aleluia!' E ali ficou o pobre Ikey, meio a dormir e a bocejar, sem saber nada da alma dele. O pobre desgraçado não tinha tempo para pensar em mais nada, a não ser no seu pobre corpo cansado.
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Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Roman pour AdolescentsObra da canadense L. M. Montgomery.