O Inverno instalou-se vigorosamente depois do Ano Novo. Grandes nevões brancos apinharam-se sobre a pequena casa, e palmos de geada cobriam as janelas. O gelo do porto ficou mais duro e espesso, até que as pessoas de Four Winds começaram as suas habituais caminhadas sobre ele. Os caminhos seguros forma assinalados pelo Governo benevolente, e de noite e de dia ouvia-se o alegre tilintar dos sininhos dos trenós. Em noites de luar Anne ouvia-os na sua casa de sonho como sinos de fadas. O golfo gelou, e o farol de Four Winds deixou de brilhar. Durante os meses em que a navegação era interrompida, o escritório do Capitão Jim tornava-se uma sinecure.
"O First Mate e eu não temos mais nada que fazer até á Primavera, a não ser manter-nos quentes e divertirmo-nos. O último faroleiro costumava ir para o Glen no Inverno, mas eu prefiro ficar no cabo. O First Mate pode ser envenenado ou mordido por cães no Glen. É um bocadinho solitário, isso é, sem a água e a luz para nos fazerem companhia, mas se os amigos nos vierem ver nós vamos passar bem."
O Capitão Jim tinha um barco para o gelo, e muitas e gloriosas voltas deram a Anne, o Gilbert e a Leslie pelo gelo escorregadio do porto com ele. Anne e Leslie também davam grandes passeios de botas de neve, sobre os campos ou sobre o porto depois das tempestades, ou através dos bosques para lá do Glen. Elas eram muito boas companheiras nas suas saidas e reuniões á volta da lareira. Cada uma tinha algo a dar á outra, cada uma sentia que a vida se tornava mais rica pela sua amigável troca de opiniões ou de silêncios, cada uma delas olhava para o campo branco entre as suas casas com a agradável consciência de ter uma amiga do outro lado. Mas apesar disto tudo, Anne sentia sempre uma barreira entre Leslie e ela, um constrangimento que nunca desaparecia completamente.
"Eu não sei porque é que não me consigo aproximar mais dela," disse numa noite para o capitão Jim. "Eu gosto tanto dela, admiro-a tanto, quero que ela entre no meu coração e me deixe entrar no dela. Mas não consigo atravessar a barreira."
"Você tem sido muito feliz toda a vida, senhora Blythe," disse o Capitão Jim pensativo. "Penso que é por isso que você e a Leslie não se conseguem aproximar completamente. A barreira entre vocês é a experiência dela de mágoa e tristeza. Nem ela é responsável por ela, nem você, mas está lá e nenhuma a pode atravessar."
"A minha infância não foi muito feliz antes de eu ter chegado a Green Gables," disse Anne, olhando muito séria lá para fora, para a beleza triste da paisagem, parada, morta, de sombras de árvores sem folhas na neve iluminada pela lua.
"Talvez não, mas era a infelicidade normal de uma criança que não tem quem olhe por ela nas condições. Não houve tragédia nenhuma na sua vida, senhora Blythe. E a pobre Leslie tem tido quase todas as tragédias. Ela sente, penso eu, se bem que talvez nem saiba que o sente, que há uma grande parte da vida dela onde você não pode entrar nem compreender, e então tem que a manter afastada disso, de a proteger por assim falar, de se magoar. Sabe que se temos qualquer coisa que nos dói nós afastamo-nos de quem possa tocar nisso, ou perto disso.
Pega-se ás nossas almas, tal como aos nossos corpos, penso eu. A alma da Leslie deve estar em carne viva, não admira que ela se esconda."
"Se fosse só isso, eu não me importava, Capitão Jim. Eu ia perceber. Mas há alturas, de vez em quando, não é sempre, em que eu acho que a Leslie não gosta de mim. Ás vezes surpreendo-lhe um olhar que parece mostrar ressentimento e raiva, é só um instante, capitão Jim, mas já o vi, tenho a certeza disso. E magoa-me Capitão Jim. Eu não estou habituada a que não gostem de mim, tenho tentado tanto ser amiga da Leslie."
"Mas você já ganhou a amizade dela, senhora Blythe. Não alimente a ideia que a Leslie não gosta de si. Se não gostasse não queria ter nada a ver consigo, muito menos andava consigo como anda. Eu conheço muito bem a Leslie para ter a certeza que não era assim."
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Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Ficção AdolescenteObra da canadense L. M. Montgomery.